No Direito Penal existe um “princípio” (deixe sua risada) chamado “Princípio da Bagatela” ou, ainda, “Princípio da Insignificância”. Do que se trata isso? Basicamente, diz que se você cometer um crime “irrelevante”, que não ameace a sociedade, que seja de baixa expressividade e potencial de lesividade mínimo, a absolvição é a sua sentença.

   Há alguns anos, antes de me converter ao libertarianismo, publiquei um artigo em que critiquei o referido “princípio”. Você pode conferir aqui se desejar informações complementares e, também, para conferir como é que os estatistas (já fui um) argumentam contra. Após minha conversão, publiquei outro artigo. A versão que será publicada no Gazeta Libertária será a mais atualizada possível.

  Você deve estar pensando que eu estou delirando e inventando. Como pode ser possível estarmos autorizados a subtrair a propriedade dos outros? Bom, veja esta decisão do STF sobre a aplicação do princípio da insignificância em um caso onde houve um furto de celular de R$90,00.

    É sabido que existe diferença gritante criada pelo Estado entre a esfera penal e a esfera cível. A vítima poderia muito bem recorrer ao âmbito cível, tendo em vista o respeito ao direito penal mínimo (reservar o direito penal aos crimes expressivos). Esse “arranjo” criado pelo legislador, pelos livros de direito e pela jurisprudência é excelente para tentar corrigir um grande buraco que existe em nosso Estado: o fato de existir o monopólio sobre a justiça.

    Somente o Estado pode fazer justiça e mais ninguém, afinal, isso não é um serviço, mas, sim, um “bem jurídico de direito fundamental às pessoas”. Por isso que ele é ruim e execrável. Quem dera se nosso sistema de penalidades fosse baseado em restituição à vítima e houvesse maior aproximação entre o “penal” e o “cível”. A diferença desses dois ramos do Direito seriam mais enxutas e eficientes.

  Quando o monopólio se estabelece, vários problemas surgem. Dentre eles, a morosidade, o serviço precário, a impunidade, a corrupçãoo aumento de preço das custas judiciais etc. Todos sabemos o que acontece: o preço sobe e a qualidade despenca. A justiça estatal é cara, não é pra qualquer um. Nos deparamos com servidores que não estão comprometidos com isso, afinal, não há concorrência e nenhum outro incentivo para que as metas sejam batidas. Aliás, mesmo que houvesse, seria humanamente impossível um monopólio conseguir acabar com todas as pendências judiciais. A demanda é surpreendentemente alta, de modo que é impossível dar conta do recado. Além disso, existe a problemática dos presídios, que vivem superlotados.

    É somente por isso que o princípio da insignificância existe. Os tribunais entendem que um furto sobre “bens de valores irrisórios” deve ser ignorado pela justiça criminal em nome do direito penal mínimo. Apenas a justiça cível deveria resolver esse problema (que também é dispendiosa, de modo que não compensaria). Podemos valorar quais bens jurídicos são mais importantes ou não, no entanto, para a ética, o errado é errado sempre. Não existe “o mais errado”. Entretanto, não é ignorando o bem jurídico ao declarar a sua não importância no ramo X, que se resolverá.

   Assim, entramos a questão dos incentivos: o princípio da bagatela incentiva crimes “pequenos” a serem praticados não só por “necessitados”, mas também por pessoas de poder aquisitivo elevado. Ele incentiva a prática habitual desses delitos que, se o judiciário perceber a habitualidade, provavelmente a pena será aplicada. Neste caso, se for aplicada a penalidade, o que foi evitado? Nada. O crime continuou e pior: o sujeito cometeu outros anteriormente e não foi punido. Desta vez foi em maior quantidade, voltando ao judiciário. O que era para evitar um gasto dos recursos da justiça com “assuntos inúteis”, acabou, no final das contas, gastando. Não seria melhor ter aplicado a pena desde o começo e evitar o incentivo à criminalidade? Por menor que fosse a ameaça? Para o Estado, não. Cria-se, então, uma “cultura à bagatela”, onde pessoas vão ao supermercado, comem uma banana e não pagam por isso.

   Seria coincidência? Uma cultura ao furto, que, por um juízo analítico, está implícito uma cultura de agressão! Exatamente o que é o Estado. A maior piada é chamar essa anomalia de “princípio”. Como agredir pode ser um princípio? Só no Estado, pois como Hans-Hermann Hoppe já disse: “um protetor de propriedades que expropria propriedades é uma contradição em termos”.

     Apesar de tudo isso, essa ferramenta poderia ser usada para se defender. Imagine que você é pego com uma arma de fogo na sua casa e você não tem nenhum tipo de munição ou, num caso ainda mais cristalino, imagine que você é pego sem arma de fogo, mas com munição em sua posse (ou porte). Pela lei, você pode ser denunciado por porte/posse ilegal de arma! Alegar esse “princípio” em sua defesa pode salvar a sua vida. Acontece que ter arma não deveria nunca ser um crime, o que por si só já justifica sua defesa.

  O Estado, então, se aproveita do discurso de “proteger os bens jurídicos mais importantes” para, na verdade, selecionar as causas que ele sabe que pode julgar de maneira menos ruim (ou não). Dessa forma, deixa outras causas no limbo porque sabe que não consegue dar conta. Denunciar um ladrão de celular que custa R$90,00 é inviável economicamente pro Leviatã. Na verdade mesmo, nem as causas mais importantes o Estado consegue resolver direito, quanto mais as “menos importantes”.

   Outros problemas também contribuem: os criminosos não restituem as vítimas, muito pelo contrário, as vítimas pagam impostos para mantê-los presos. Isso se dá porque a lei “garante” que eles serão “ressocializados”. Sabemos o final dessa história. Então, o ponto é: nós pagamos altos impostos, pagamos mesmo assim pela ineficiência do Estado decorrente dos seus monopólios. Quando precisamos dos serviços do Estado, ele não nos atende e ainda nos surpreende com casos desse tipo ao dizer o que é e/ou não é de valor para ele e para nós. Ora, o valor é subjetivo. Só porque o preço de algo é R$90,00, não significa que deva ser ignorado. Atenção, estamos falando de agressão à propriedade! Se algo é seu, somente você (caso não terceirize expressamente por contratos) pode dizer se vai levar o infrator à justiça ou não, se vai perdoá-lo ou não.

   Mas o Estado transforma o Direito Penal em algo totalmente distinto do Direito Civil, além de desprezar totalmente a vítima. Qual a consequência disso? A vítima, se quiser restituição e indenização, tem que entrar no âmbito cível e, se quiser punir criminalmente, deve entrar no âmbito penal. Claro, ela pode fazer apenas uma dessas ou nenhuma. O que importa é: qual o sentido disso ter que entrar com duas ações diferentes em âmbitos diferentes? Evidente estímulo para o lesado não reaver o que é seu por direito, neste caso.

   Não se fala aqui na extinção da esfera penal e/ou cível. O que se critica aqui é a forma como esses ramos são tratados (e conduzidos processualmente e materialmente), justamente porque não há cálculo econômico no mercado judicial. Não há concorrência para organizar esses ramos da melhor maneira possível. Sem essa condição, ficamos a mercê das anomalias estatais: que estimulam crimes e desestimulam a vítima a buscar justiça. Uma ação judicial é cara e repleta de problemas e dores de cabeça. Será que realmente compensa se socorrer à justiça para punir um ladrão de celular? Para o Estado, um sonoro “não”!

   Furto é crime e deve ser tratado como tal, não importa o valor ou o preço do bem, pois o que importa é se houve o dano à propriedade. Agora, se o Estado não consegue dar conta da demanda porque está falido e precisa selecionar arbitrariamente os crimes mais importantes, ai é outro problema criado pelo próprio sistema estatal monopolístico. Essa maneira do Estado ignorar crimes também é outro problema, uma vez que cria incentivos para a sociedade praticar atos tipicamente criminosos de “menor potencial ofensivo”.

   Dessa forma, questiono: esse incentivo criado não seria uma ofensa em potencial à sociedade (e diretamente aos indivíduos)? Saber que não será punido em furtos pequenos porque a lei estatal garante isso, e tirar proveito disso, é algo ético?

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