O assunto do aborto já foi muito discutido no meio libertário, por conta dessa discussão o libertário Nicholas Ferreira escreveu um artigo com o objetivo de responder os argumentos pró-aborto. Esse artigo já foi lançado por partes no site “Cultura Libertária“.
Estaremos deixando o link do artigo original e do artigo postado no Cultura Libertária:
http://www.culturalibertaria.com/2018/05/1-aborto-introducao-respostas.html
Confira o PDF com o artigo completo aqui
Introdução
Prefácio
Muito se tem discutido, tanto no meio libertário quanto fora dele, acerca da questão do aborto. Este é o tipo de assunto em que, independentemente do pensamento do grupo de pessoas, quase sempre haverá discordância. Vários são os argumentos usados na defesa dessa prática – ou, pelo menos, na defesa do suposto direito de realizar esta prática. Neste artigo eu tentarei responder a alguns desses argumentos. Já declaro de antemão que estou totalmente aberto a críticas, desde que feitas de maneira consistente e não falaciosa, pois, afinal, não se pode saber de tudo.
Minha motivação para este texto foi a participação de incontáveis discussões sobre a validade do aborto – principalmente no grupo Cultura Libertária –, além das suas possíveis implicações em uma sociedade libertária; discussões estas nas quais os debatedores sempre utilizavam os mesmos argumentos mainstreams para a defesa do aborto, caindo em contradições, falácias ou simplesmente expondo uma ideia errada repetindo as frases de efeito famosas. Decidi, portanto, responder a cada um dos argumentos que mais ouvi, tanto nessas discussões quanto nas redes sociais, expondo seus pontos fracos e mostrando o motivo de serem raciocínios falhos e/ou falaciosos, para que o ponto de vista libertário (ou melhor, o meu ponto de vista) seja conhecido antes que as discussões voltem a acontecer pelos mesmos motivos. O público alvo deste texto são, em especial, os membros participantes do grupo Cultura Libertária, muitos dos quais já conhecem cada um dos argumentos e suas respectivas respostas; e, no geral, qualquer ser com capacidade argumentativa que demonstre interesse pelo assunto e que deseje conhecer o outro lado da moeda.
Em primeiro lugar, darei a definição de aborto que será usada nos textos posteriores. Aborto é a interrupção voluntária da gravidez antes que o embrião ou feto tenha capacidade de se manter vivo e de se desenvolver fora do útero da mãe. Pode ser induzido pelo uso de drogas, exposição a substâncias tóxicas, consumo de certas plantas, trauma físico, massagem abdominal bruta, procedimento cirúrgico ou mesmo retirada forçada do feto com certos objetos, como um cabide, por exemplo. É diferente do aborto espontâneo, no qual a mãe não age para que ele seja consumado;
apenas acontece naturalmente, de forma acidental, não intencional e sem ação praxeológica[1].
Em segundo lugar, gostaria de esclarecer uma coisa sobre os argumentos. Há, para os fins deste texto, dois tipos de argumentos, sejam eles contrários ou favoráveis ao aborto: os argumentos éticos e os utilitaristas. Os primeiros estão preocupados com a eticidade da ação. Nesse tipo de argumentação, busca-se a verdade acerca da validade jurídica[2] do ato de abortar, ou seja, saber se é errado ou não. Assim, essa forma de argumentar não se preocupa com as possíveis consequências da não-ação, pois, se uma dada ação é incorreta, então ela não deve ser praticada em hipótese alguma, não importando as consequências que podem surgir caso ela não seja executada. Dessa forma, os argumentos éticos apenas sinalizam que uma determinada ação não deve ser praticada, como por exemplo, o roubo de um clipe de papel para que o planeta seja salvo. Pode parecer um exemplo bizarro, e de fato é, mas ele ilustra bem que a ética não é relativa. Uma violação de propriedade é incorreta e injustificável em qualquer caso, mesmo que seja por algo útil para todos os seres humanos. Já os argumentos utilitaristas assumem que a validade sobre uma determinada ação está diretamente atrelada à sua utilidade e à sua capacidade de produzir bem-estar. Por exemplo, de acordo com um possível argumento utilitarista, se roubar uma pequena quantia de um rico para comprar um pão para um pobre causar mais bem-estar e felicidade no pobre do que malestar e infelicidade no rico, então esse saldo líquido é positivo (há, no final, mais bem-estar geral que mal-estar geral) e, consequentemente, a ação executada é correta; ou não é incorreta.
É importante fazer essa distinção antes de começarmos o texto propriamente dito para que não haja mal-entendido. É perfeitamente possível, embora que de maneira dissonante, que uma pessoa mantenha uma posição ética em relação ao aborto e uma posição utilitária contrária, pois, neste caso, há o envolvimento do fator emocional, da utilidade, que é subjetiva, e principalmente da moral, que também o é. Tentarei deixar claro no texto as partes em que expressarei minha opinião, em vez de informações objetivas. Gostaria de dizer, também, que talvez o texto se torne repetitivo, pois muitos dos argumentos favoráveis ao aborto têm exatamente a mesma resposta. Preferi escrever a mesma resposta individualmente para cada argumento porque assim é, então, possível que alguém veja este texto apenas como consulta, caso se interesse pela resposta a um argumento em específico. Então, caso leia algum contra-argumento que já tenha lido anteriormente, releve a repetição.
A priori e a posteriori[3]
Ainda, antes de começarmos com os argumentos propriamente ditos, creio que seja necessário fazermos uma distinção epistemológica entre conhecimentos a priori e a posteriori. Acredito que seja importante fazer tal distinção para que a análise dos argumentos seja mais detalhada. Tentarei ser claro e não me prolongar muito em tais juízos.
Um conhecimento é dito a priori quando pode ser obtido sem a dependência da experimentação, apenas com a racionalidade. Por exemplo, o fato de que triângulos têm três ângulos é um conhecimento a priori, por conta da própria definição de triângulo. Esta afirmação em especial, aliás, é impossível de ser comprovada na prática, uma vez que triângulos são figuras geométricas perfeitas e, portanto, não podem existir na realidade, já que são feitos de linhas, que são feitas de pontos, que são adimensionais e, portanto, impossíveis de existirem no mundo físico. Outro exemplo de juízo a priori, porém, diferente do anterior, é o fato de que indivíduos agem utilizando meios, recursos, buscando melhorar seu estado de satisfação. Este é o axioma da ação humana[4]. Não é necessário conhecer e observar todos os indivíduos existentes no universo para chegar a essa conclusão, e a simples negação de tal proposição já provará que ela é verdadeira. Podemos, ainda, afirmar que 2+2=4 (na base numérica 10), e que ou está chovendo ou não está chovendo. Ambas são, também, proposições verdadeiras e que não dependem de uma experiência para serem conhecidas.
Um conhecimento a priori não é obtido apenas se abstendo completamente de qualquer experiência prévia, mesmo porque isto é inconcebível. Por exemplo, para saber que um objeto vermelho é colorido (proposição verdadeira a priori) é necessário antes conhecer o conceito de cor e de vermelho, o que só pode ser obtido através da experiência. No entanto, o que distingue o conhecimento apriorístico dos demais é a forma com que ele é conhecido, não a forma com que adquirimos os conceitos relevantes para conhece-lo. Em outras palavras, do fato de termos adquirido um certo conhecimento através da experiência não segue que não possamos utilizá-lo para a obtenção de um conhecimento a priori.[5]
Por outro lado, um conhecimento é dito a posteriori quando sua obtenção ocorre em virtude da experiência, sem a qual o conhecimento não pode ser consolidado. Por exemplo, a proposição “a água ferve a 100ºC na pressão de 1 atm.” é um conhecimento a posteriori, pois, até onde sabemos, não é possível se deduzir a temperatura de ebulição da água sem a observação, apesar de ser possível calculá-la para diferentes pressões, através de equações obtidas a partir de informações empíricas. Nada garante, entretanto, que sempre que a água for submetida a estas condições ela irá ferver, apesar de isso ter sido observado em todos os casos até agora. Outro exemplo de juízo a posteriori é a proposição “o céu é azul”, uma vez que esse conhecimento depende da visão e interpretação das cores pelo cérebro. Isso pode gerar controvérsias por conta da dependência da percepção, que é subjetiva a cada indivíduo.
Por que isso é importante? A distinção desses tipos de conhecimento é importante para entendermos algumas limitações epistemológicas. O método científico, por exemplo, tem como base a observação de um fenômeno no mundo real, ou seja, a obtenção de conhecimento por meio da experimentação. Após observado o fenômeno, são formuladas hipóteses que tentam explicar esse fenômeno e, em seguida, mais experimentações são feitas para comprovar ou derrubar as hipóteses levantadas previamente. Posteriormente, todos os dados são avaliados e verifica-se se a hipótese proposta é coerente com os resultados e, por fim, elabora-se uma teoria científica ou uma lei. O método científico é, sem dúvidas, um excelente modelo para se obter conhecimento. Foi graças a ele que o desenvolvimento da ciência pôde ser padronizado, facilitando a integração entre experimentos de cientistas diferentes e promovendo um grande avanço na ciência e tecnologia.
Entretanto, ao observar a evolução da ciência ao longo da história, é possível perceber que inúmeros conceitos foram alterados ao longo dos anos e até hoje continuam sendo questionados. A ciência se baseia na dúvida, no questionamento acerca da veracidade do resultado de um experimento. Por muito tempo as pessoas acreditavam que a Terra era plana. Ora, não há nada mais intuitivo que pensar dessa forma ao observar o horizonte e vê-lo absolutamente reto. Porém, a dúvida nos fez pensar além, e a matemática – que se trata de conhecimentos a priori – foi a ferramenta fundamental para contrapor completamente a intuição e provar que a Terra não é plana, mas sim que tem um formato esférico. Durante milênios o consenso dos cientistas – ainda que não existisse um método científico propriamente dito – foi de que a Terra era plana, mas bastou uma demonstração matemática para derrubar toda esta crença. É possível, obviamente, constatar a falha nesse pensamento através da experiência também, como observar a Terra do espaço, ver navios sumindo no horizonte ou perceber a diferença na angulação das sombras feitas pela luz do Sol em diferentes latitudes.
Assim, é possível perceber que apesar de os sentidos serem extremamente importantes para a obtenção de conhecimento, eles podem nos levar a interpretações erradas da realidade[6]. O fato de o horizonte ser plano nos induzir a acreditar que a Terra é plana é um bom exemplo disso. A forma com que a vida evoluiu e se adaptou explica algumas coisas também. Por exemplo, vemos a água transparente por conta do mecanismo evolutivo dos olhos e do local em que essa evolução ocorreu: a água. A água é opaca para a maioria das frequências de onda, exceto pela porção do espectro visível. Ainda, nesse espectro, a absorção é bem menor na faixa do azul, significando que essa cor é mais refletida que as outras, o que explica a cor dos oceanos, por exemplo[7]. Você enxerga um copo com água transparente porque o mecanismo transducional dos fotorreceptores na sua retina é sensível aos comprimentos de onda que passam pela água. Se, por outro lado, suas células da retina fossem sensíveis a ondas de rádio, por exemplo, mas não ao espectro visível, você não enxergaria a água transparente, mas sim, opaca, como óleo de carro ou mercúrio, que não deixam a luz atravessar. Isso não quer dizer, entretanto, que a água é, de fato, dessa forma. As cores são atributos construídos em nosso cérebro, baseado em nossas experiências subjetivas[8].
Dessa forma, fica evidente que usar conhecimentos obtidos através do método científico – que tem como base a experimentação – como premissas para afirmações de caráter normativo e universal é problemático, pois inúmeros são os exemplos de consensos errados que foram estabelecidos ao longo da história e que foram tomados como inquestionáveis por tempos. A relação disso com os argumentos pró-aborto será discutida mais para frente.
Para terminar essa introdução, gostaria de salientar mais algumas coisas. Se um conhecimento é obtido a priori, através da dedução, e ele é verdadeiro, então ele não pode ser confrontado por uma objeção a posteriori. Por exemplo, se for possível se chegar à conclusão de que roubar é errado a priori, essa conclusão não pode ser confrontada por um argumento que diz que não é errado roubar dos ricos para dar aos pobres. Isso não pode ser feito, pois, a motivação que leva a pessoa a acreditar nisso é subjetiva, na maioria das vezes emocional. Alguém que argumenta dessa forma pode tentar justificar sua posição dizendo que não faz diferença para o rico e que o bem subtraído dele fará uma diferença positiva muito maior na vida do pobre do que uma diferença negativa na vida dele, e, portanto, não há problema em fazê-lo. No entanto, esse é um argumento utilizando conceitos a posteriori, como valor e moralidade, que são ambos subjetivos, para tentar invalidar uma verdade a priori (a de que roubar é errado).
Não se pode provar o quão valoroso é um determinado bem para um indivíduo, nem muito menos fazer o cálculo do valor; este é um conceito que pode ser conhecido apenas em primeira pessoa, é um conceito qualitativo, não quantitativo[9]. É claro que ele pode ser, de certa forma, expresso pelo sistema de preços, mas os preços não revelam o real valor atribuído pelo indivíduo para o bem. De qualquer forma, roubar continua sendo errado, independente das circunstâncias. Do contrário, chegar-se-ia à conclusão à priori de que roubar é errado, exceto se for de alguém rico para alguém pobre; e, certamente, não é isso o que ocorre.
Perceba que são dois ‘reinos’ distintos, são formas diferentes de conhecimento. Não se pode confrontar um conhecimento verdadeiro a priori com uma objeção subjetiva a posteriori. Não faz sentido. É como se eu lhe perguntasse “quantos quilogramas cabem em dois minutos?”. A pergunta não faz sentido porque dois conceitos de ‘reinos’ diferentes foram associados através de uma relação de vínculo, o de contenção (dois minutos conterem x quilogramas). Não é possível conceber um quilograma de alguma coisa contido em dois minutos, bem como não é possível conceber a objeção de um conhecimento verdadeiro a priori com uma objeção subjetiva a posteriori.
Ética
Demonstrarei agora o motivo de a ação de abortar ser antiética. Vale lembrar, ainda, que o critério aqui utilizado para a determinação da eticidade de uma ação é a lei de propriedade privada[10]. Não demonstrarei a lei de propriedade em si, pois isto é trabalho para outro artigo e muito já se tem escrito sobre isso. Ainda, não defenderei como ou se a mulher deve ser punida pelo aborto, nem falarei quanto ao possível julgamento ou pena, mas sim apenas sobre a validade da ação. Abster-me-ei, na maior parte, de argumentos a posteriori, como os de cunho científico ou estatístico, evitando ser enganado pelos sentidos e por possíveis vieses de pesquisa, como já explicado anteriormente, compreendendo-me no crivo da razão.
Conforme a ética libertária, nenhum tipo de agressão pode ser consistentemente defendido, sendo gerada uma contradição prática a toda vez em que isso é feito. Por conta dessa contradição, pode-se inferir que a defesa proposicional da agressão é inválida, e, portanto, não pode estar correta, segundo o princípio da não contradição e do terceiro excluído[11]. A agressão é definida como violação de propriedade privada; e a propriedade privada é definida como o direito que um indivíduo tem de controle exclusivo sobre um determinado recurso. O corpo de um indivíduo é um recurso como outro qualquer, no sentido material, físico, e é propriedade dele mesmo (do indivíduo). Ou seja, cada indivíduo é proprietário do seu próprio corpo e a existência dessa propriedade é ser demonstrada através da argumentação, visto que reconhecimento da existência e validade da autopropriedade dos indivíduos é a pressuposição praxeológica para a execução da ação da argumentação[12]. Em outras palavras, ao entrar em uma argumentação a favor de uma agressão, o indivíduo já reconhece previamente a lei de propriedade como válida e, como está usando da argumentação para ir contra algo pressuposto por ela própria, entra em uma contradição prática, e sua afirmação não pode estar correta.
O indivíduo O indivíduo é um ser dotado de direitos; no caso, a propriedade privada. É um agente moral, caracterizado pela racionalidade, pela capacidade de ter percepções conscientes da realidade (senciência), pela capacidade de vivenciar, aprender, compreender os eventos e entender que compreendeu (daí a denominação Homo sapiens sapiens, homem que sabe que sabe); de argumentar, agir propositadamente. Todos os seres participantes da classe de serem que possuem essas características são indivíduos, seres dotados de direitos.
Não se pode conferir o direito de propriedade privada a outros entes que não os indivíduos, como um cão, uma bactéria ou uma bromélia, por exemplo. Não há soluções para problemas de conflitos envolvendo seres não racionais, visto que eles são incapazes de compreender qualquer norma, inclusive a norma de propriedade, não podendo reconhece-las nem respeitar o direito de outros seres, caso tivessem. Trata-se de uma situação extra-moral, um contexto em que há um problema técnico, não moral ou ético. Como consequência, a solução de um problema como o conflito através da propriedade privada só pode ser racional se ambas as partes envolvidas no conflito tiverem a capacidade de engajar em uma argumentação, ou seja, forem indivíduos racionais, ou pertencerem à esta classe[13].
Após ler os parágrafos anteriores, talvez você esteja mais convicto de que o aborto não é errado, pois, aparentemente, o feto não cumpre nenhuma das condições necessárias para ser caracterizado como um indivíduo de direitos, um agente moral. Ora, um zigoto aparentemente não é racional, aparentemente não pensa, aparentemente não age praxeologicamente, aparentemente não tem senciência, aparentemente não sabe que sabe, não tem sentidos e nem argumenta. Por que considerá-lo, então, como um indivíduo, mesmo ele não cumprindo tais requisitos? Ocorre que pensar dessa forma leva a um mal entendimento, pois não foi levado em conta a categoria ontológica do ser enquanto ser – no caso, do feto –, sendo analisadas apenas as condições materiais dele.
Ontologia
É possível classificar as árvores como “coisas” que nascem de outras árvores, seja qual for a forma de reprodução; crescem, se desenvolvem, fazem fotossíntese, amadurecem, ficam velhas e morrem; possuem folhas verdes e/ou amarelas, ou mesmo que não possuem folhas; um caule de madeira; podendo ser baixas, altas, com raízes grandes ou pequenas, dos mais variados formatos; com ou sem frutos, dependendo da estação do ano em que for observada, da iluminação a que ela está sujeita e da interpretação das cores pelo cérebro do indivíduo. Uma árvore podada com a finalidade de ter sua aparência modificada a fim de agradar seu proprietário não deixa de ser uma árvore em sua essência, apenas porque sua aparência está diferente da que tinha anteriormente. Além do mais, todas as árvores são diferentes, mesmo aquelas de uma mesma espécie. Ainda que possuam o mesmo DNA, não serão a mesma árvore, certamente terão números diferentes de células, poderão dar um número diferente de frutos, seus metabolismos funcionarão de forma diferente, poderão se comportar de maneira diferente aos estímulos do ambiente, além de realizarem diferentes relações ecológicas com outras plantas e animais do meio. Em outras palavras, à rigor, todas as árvores, ou, extrapolando, todos os seres são diferentes de tudo o que se pode conhecer, mesmo daqueles que são ditos participantes de sua classe, na medida em que cada ser é único, estritamente inigualável. A igualdade é um conceito inexistente no mundo material. Por mais que se tente imaginar dois corpos iguais, por exemplo, dois prótons de hidrogênio (H+) a uma temperatura de 0 Kelvin, ainda assim, cada um deles ocupará um lugar diferente no espaço e, portanto, não terão os mesmos atributos. Se não têm os mesmos atributos, não são iguais. Isso é apenas para demonstrar que a igualdade não existe no mundo físico.
Ora, se as árvores estão sujeitas a mudanças temporais, morfológicas, fisiológicas e perceptivas, além das diferenças entre as espécies, ou, de forma mais geral, se todos os seres são expressamente diferentes entre si; como podemos definir suas existências? O universo da existência e da definição estão melhores determinados quando tratamos de uma classe de objeto, em vez de quando tratamos de um objeto particular[14], pois cada ser possui seu conjunto próprio e único de particularidades, propriedades, atributos. É necessário que se faça tal distinção por classe ontológica (ou, para simplificar, por espécie) porque caso seja analisado apenas o padrão de comportamento instantâneo do ser para determinar se ele é um indivíduo ou não, pessoas dormindo, em coma, sob efeito de certas drogas ou que possuírem certo grau de retardo mental não seriam indivíduos, pois não estariam exercendo sua faculdade mental plenamente naquele momento. Platão diria, por exemplo, que cada ser particular faz parte de um conceito maior, uma ideia geral, um conjunto universal que o abrange e abrange todos os demais seres particulares com as mesmas particularidades. Ou seja, o conjunto é uma forma pura, a essência da coisa em questão, enquanto os particulares são espécimes, exemplares sujeitos a modificações externas[15]. Assim, a árvore “X” que está no meu quintal é apenas um espécime, assim como cada uma das centenas de outras árvores “X” que estão no Central Park agora também são. Todas elas fazem parte de uma mesma categoria ontológica, na medida em que a essência “árvore X” é a mesma, apesar de as substâncias apresentadas no campo material serem diferentes.
Apesar de as árvores poderem apresentar mudanças singulares ao longo do tempo, tanto nelas próprias quanto entre outras árvores, sua essência não é alterada até que ela deixe de existir como tal, como quando morrem naturalmente ou são cortadas para servir de matéria prima para um móvel, por exemplo. Assim, uma árvore que perde uma folha não deixa de ser uma árvore em sua essência, bem como um broto nascente também não o faz. Uma árvore comprida que foi pintada de branco e é usada como poste de iluminação não perde sua essência, apesar das alterações externas.
De modo igual, uma borboleta é ela própria desde seu nascimento, desenvolvimento larval, crescimento na forma de lagarta e metamorfose até atingir seu estágio final de borboleta. Não surge daí um outro animal, novo. Trata-se do mesmo, diferindo apenas no estágio. Pode-se inferir que uma borboleta não é uma borboleta enquanto é uma lagarta, mas sim que é, de fato, uma lagarta. Ora, pouco importa a forma com que denominamos o ser, muito menos a forma com que o ser é percebido pelos outros seres. O cerne da questão é o ser enquanto ser, sua essência. Da mesma forma, uma jovem com quatro, doze, vinte e oito ou setenta e três anos; um homem sem braço, ou com Síndrome de Down, ou um idoso com diabetes, ou um recémnascido, ou um homem sem olhos, ou um feto, ou uma mulher paraplégica; todos são seres humanos e, portanto, são indivíduos por essência. Dizemos, então, que todos fazem parte da mesma categoria ou classe ontológica: a de indivíduos de direito, cuja essência está no campo formal, não no material – ou, em outras palavras, está no númeno, não no fenômeno[16] – e, portanto, não importa o que é nos apresentado para os sentidos.
É possível que se objete que, seguindo esta linha de raciocínio, um embrião de galinha seria uma galinha, uma semente seria uma árvore, uma larva seria uma borboleta, um minério de ferro seria uma espada, ou qualquer outra variação de “um [coisa antes] seria um [coisa depois]”. O argumento geral é ridicularizado caso seja apenas avaliado a questão material, concreta, sem levar em conta a essência, o formal. A substância destas coisas é a mesma desde o momento em que passaram a existir, enquanto a parte física é mutável. Quando se afirma que um feto é um indivíduo bem como um humano adulto, não se quer dizer que ambos são fisicamente tão iguais entre si quanto outros dois indivíduos adultos; mas sim que ambos possuem a mesma essência, e, portanto, os mesmos direitos, independentemente das condições concretas, da aparência, do fenômeno.
Assim, fica claro que, apesar das inúmeras diferenças físicas entre um feto e um indivíduo adulto, além das diferenças presentes entre os próprios indivíduos adultos, – diferenças estas presentes no mundo concreto –, suas essências são exatamente as mesmas, pois, ambos fazem parte da mesma classe ontológica, são indivíduos dotados de direito. Portanto, sendo o feto um indivíduo dotado de direito, provocar sua morte é uma violação de propriedade (lembre-se que o corpo é propriedade do indivíduo) e, portanto, é uma ação antiética. Como o aborto, definido no começo como interrupção voluntária da gravidez antes que o feto possa sobreviver fora do útero, é uma ação que causa a morte do feto, ele é, dessa forma, uma ação antiética e não deve ser praticado.
Além do mais, como demonstrado por Hans-Hermann Hoppe, usar o corpo para argumentar a favor de qualquer tipo de agressão é contraditório na prática, visto que os direitos de propriedade já são pressupostos antes mesmo de a atividade argumentativa dar início, sendo eles condições formais desta[17]. Em outras palavras, alguém que faz isso estaria pressupondo que direitos de propriedade existem e são válidos, e em seguida argumentaria que eles podem ser desrespeitados. Isto faz tanto sentido quanto eu afirmar que estou morto, ou quanto eu propor que proposições não existem, ou escrever uma carta que afirma que cartas não existem, ou eu escrever aqui que artigos sobre aborto não existem. Dessa forma, qualquer um que se posicionar a favor do aborto, ou a favor do suposto direito de abortar, cairá em uma contradição prática, pois ao argumentar, estará assumindo que os indivíduos têm autopropriedade e em seguida dirá que ela pode ser violada. Como é sabido que uma proposição contraditória não pode ser verdadeira, a defesa do aborto como uma prática legítima é intrinsicamente inválida.
Isto posto, veremos agora as respostas para os argumentos próaborto. Começarei pelos mais comuns, propagados pela mídia e compartilhado pelas pessoas em redes sociais e terminarei com os menos comuns, mas que ainda assim merecem atenção.
1 Uma ação praxeológica, ou ação humana, é definida como uma ação propositada, racional, consciente; a vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e objetivos usando meios para isso. Ler mais em Mises, L. von – Ação Humana – Um Tratado de Economia, p., (Yale Press University, 1949; Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010).
2 Vale ressaltar que a lei citada neste e nos próximos textos é a lei natural de propriedade privada, não a lei positivada do Estado. Ver mais sobre lei natural em Murray N. Rothbard, A étia da lierdade, Parte I, (Atlantic Highlands, N.J.: Humanities Press, 1982)
3 Ver mais sobre juízos a priori e a posteriori e Kat, I., Crítica da razão pura, Itoduço.
4 Mises, L. von – Ação Humana – Um Tratado de Economia, p., Yale Pess Uiesit, ; Istituto Ludwig von Mises Brasil, 2010).
5 Branquinho, J., Murcho, D., Gomes, N., et al, “Enciclopédia de termos lógico-filosóficos”, 2005, pg. 11
6 Reé Desates, e sua oa Meditações Metafísicas, afia ue alguas ezes os setidos so enganosos, e que é de pouca prudência confiar completamente em que já nos enganou uma vez.
7 Saii, A., Maieli, F., O modelo ondulatório da luz como ferramenta para explicar as causas da cor, Re. Bas. Esio Fis. Vol., So Paulo,
8 Bea M. F., Coos, B.W. , Neurociências – desvendando o sistema nervoso, (Editora Artmed, 2017), 4ª edição, pg. 296.
9 Mises, L. von – Ação Humana – Um Tratado de Economia, p., Yale Pess Uiesit, ; Istituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), pg 130.
10 Para uma justificação da lei de propriedade privada, ler Hoppe, H-H., Economics and Ethics of Private Property: Studies in Political Economy and Philosophy, Ludig o Mises Istitute, Auu, , ª edição, caps. 12 e 13.
11 Princípios da lógica clássica que nos dizem que ou uma determinada proposição é verdadeira ou sua negação é verdadeira. Ou seja, ou uma dada proposição é verdadeira ou ela é falsa, não havendo uma teeia opço, ue é, potato, eluída. No aso, se a poposiço agedi é oeto é otaditóia, então ela está errada, e, portanto, sua negação (agredir não é correto) está correta, visto que não há uma terceira opção.
12 Ver nota 10.
13 Ibid, pg. 385.
14 Vieia, S. O livro Γ da Metafisia de Aristóteles: ontologia – a ciência do Ser enquanto Ser, Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), 2014), pg. 156
15 Heehe, L. Otologia I, ª ediço, Floiaópolis, Filosofia/EAD/UFSC.
16 Fenômeno se refere ao que é percebido nas experiências, através dos sentidos, isto é, ao que nos é mostrado pelo ser, aquilo a que temos acesso. Já o númeno se refere ao ser enquanto ser, sua própria essência, seu interior. Não é possível conhecer o númeno de um objeto, ou seja, sua essência de fato, mas sim apenas o seu exterior, a forma com que ele é sentido.
17 Sobre a ética argumentativa, ler Hoppe, H-H., Economics and Ethics of Private Property: Studies in Political Economy and Philosophy, Ludig o Mises Istitute, Auu, , ª ediço, ap.