Outro argumento extensamente difundido é o de que a mãe pode estar submetida a situação em que a gravidez ou o parto apresentem um risco à sua vida e, portanto, ela deve ter o direito de realizar o aborto para preservar a própria vida. A fundamentação deste argumento parte de uma análise puramente pragmática e utilitarista, ignorando completamente as possíveis violações éticas e morais da ação e sobrepujando unicamente o interesse próprio da mãe. É claro, se a pergunta é “quais são os melhores meios para alcançar tal fim” – no caso, quais são os melhores meios para evitar que a mãe morra na gravidez ou no parto – então eu me isento, pois só quem pode responder isto é o agente, visto que se trata de um imperativo hipotético[26]. Mas, novamente, o escopo deste artigo é quanto a validação ética do aborto, se é certo ou errado, e os juízos de valores – que são subjetivos – não são importantes aqui.

   É comum ouvir as pessoas falarem que o certo e o errado são relativos, que dependem da cultura, da época, dos costumes, da religião, da criação da pessoa, e não raramente usam alguns exemplos esdrúxulos como o fato de alguns povos do oriente terem o costume de se alimentar com carne de cães, enquanto as pessoas do ocidente geralmente repugnam esta prática; ou então o de que alguns indígenas consideram errado realizar várias ações que praticamos diariamente sem percebermos e consideramos absolutamente normais.

   Se é assumido que o certo e o errado são relativos, então não há motivos para reclamar de uma pessoa que quer punir uma mulher que realizou um aborto, já que não seria errado fazer a punição, uma vez que certo e errado são relativos. Aliás, estendendo este pensamento, também não há motivos para reclamar de um estuprador, pois, para ele, não é errado estuprar – ou ele considera errado, mas sua ação demonstra que esta consideração é sobreposta pela sua preferência. Não há por que reclamar de ladrões, assassinos, fraudadores, torturadores ou estupradores, ou de qualquer outro malfeitor que seja, porque o certo e o errado são relativos e tudo isso depende.

   Muitas pessoas não relativizam completamente a validade das ações. Infelizmente, muitas vezes uma mesma ação tem sua validade relativizada dependendo das circunstâncias. Geralmente, as pessoas têm um framework de ações que são consideradas inerentemente erradas, como a tortura e assassinato de inocentes e o estupro, por exemplo. No entanto, outras agressões, subjetivamente caracterizadas como menos impactantes, não recebem tal atenção. Por exemplo, ao perguntar se o roubo é errado, é provável que se afirme que é errado. Porém, ao perguntar se é errado roubar comida de alguém muito rico para alimentar os filhos que estão morrendo de fome, é provável que a validade da ação (o roubo, que é a mesma ação de antes) seja relativizada, por conta da influência do fator emocional, e que a resposta seja “não”, diretamente ou na forma de algum eufemismo falacioso.

   Talvez você esteja se perguntando a relação disso com o argumento, e é simples. Muitas vezes é afirmado que realizar o aborto deliberadamente é errado, que é uma atitude incorreta e passível de punição, e ao mesmo tempo afirma-se que se a vida da mãe estiver em risco, o aborto é correto. É aí que entra o que foi discutido nos parágrafos anteriores. Segundo este argumento, o ato de abortar deixa, automaticamente, de ser uma atitude errada, dependendo das circunstâncias. No caso, se a gestação ou o parto apresentarem um risco iminente de vida à mãe, o aborto deixaria de ser uma atitude reprovável e passível de punição e passaria a ser uma atitude compreensível e até mesmo encorajada.

   É incoerente defender que uma mesma ação é válida ou inválida, dependendo da ocasião. É necessário ter em mente que relativizar a validade de uma ação, como o roubo, por exemplo, com base em conceitos subjetivos, como a quantidade de utilidade gerada pela ação, é dar um tiro no próprio pé; pois, como foi dito anteriormente, é possível usar o mesmo argumento para justificar qualquer coisa, visto que a utilidade é subjetiva ao indivíduo.

   Assim, quando o assunto é ética, não importa se a gravidez ou o parto apresentam um risco para a vida da mãe. A ética se preocupa com o que deve ou não deve ser feito, independentemente das circunstâncias. Se você ‘precisa’ roubar um clipe de papel de alguém para salvar a humanidade da destruição total e você o rouba, você cometeu uma atitude antiética: o roubo. Roubar alguém é indefensável em qualquer ocasião, é errado não importando o que resultou nesta ação ou o que esta ação pode resultar. Isso não quer dizer, entretanto, que você vai ser punido após realizar o roubo, ou que as pessoas irão lhe condenar pela sua atitude. Certamente muita gente te consideraria um herói por salvar a humanidade, não dariam importância para o crime que você cometeu, mas isso não quer dizer que você agiu de maneira correta. O correto, neste caso, é não roubar. Sim, a humanidade será destruída caso isso não seja feito, mas como a análise que está sendo feita é sobre a ação do roubo, não importa o resultado.


Bônus: “Não há escolha” 

   É usado, ainda, o argumento de que se a vida da mulher correr perigo, ela não tem escolha senão abortar. Isto é uma posição falaciosa, na medida em que sempre há mais de uma opção. Há a opção de abortar e possivelmente se salvar da morte, assim como há a opção de não abortar e possivelmente morrer. Isso é um conceito básico de lógica, o princípio do terceiro excluído: ou A ou não-A. Em outras palavras, ou ocorre o aborto ou não ocorre o aborto. Uma dessas duas opções precisa, necessariamente, acontecer, demonstrando que há pelo menos duas ações que podem ser feitas e que, portanto, há escolhas a serem feitas. Uma possível objeção a isso é o apelo à emoção, dizendo que a morte não é uma opção válida porque a mãe não quer morrer, ou porque a família da mãe vai sentir com isso, ou porque ela não merece sofrer assim, ou qualquer outra derivação tosca. Acontece que o que está em jogo não é a opinião da mãe acerca das opções, muito menos a valoração que ela dá a elas, mas sim as opções propriamente ditas. Se há a opção de ela abortar e há a opção de ela não abortar e ela opta pela primeira, não há como defender consistentemente que não houve opções.

   Toda decisão humana representa uma escolha. Ao fazer sua escolha – no caso, o aborto –, a mulher escolhe entre as opções existentes a que acha que irá lhe satisfazer melhor, como se pode extrair do próprio axioma da ação humana[27]. Todos os valores humanos são oferecidos para opção. Todos os fins e todos os meios, tanto os resultados materiais como os ideais, o sublime e o básico são ordenados numa sequência e submetidos a uma decisão pelo indivíduo, que escolhe um e rejeita outros[28]. O contentamento individual pressupõe que a razão calcule dentre os seus desejos aqueles que serão objeto de satisfação. Toda escolha se faz dentre possíveis. Uma escolha que saísse desses parâmetros seria insensata.[29] Não faz sentido, portanto, argumentar que não há escolha e que a mulher é obrigada a abortar, uma vez que isso é contra o próprio axioma da ação humana.


26 Para Kant, o imperativo hipotético, diferentemente do categórico, é condicional; ou seja, é um meio que depende da finalidade que o indivíduo quer atingir, representando o que deve ser feito caso tal objetivo seja almejado. Por exemplo, se você quiser manter uma boa saúde, você não deve comer em excesso. Isso não quer dizer que ninguém deva comer em excesso; somente aquelas pessoas que almejem tal fim (o de manter uma boa saúde). Para ler mais sobre o imperativo hipotético e categórico, leia Kant, I. Fundamentação da Metafísica dos costumes. [S.l.: s.n.] 
27 Ver nota 1. 
28 Mises, L.v. – Ação Humana – Um Tratado de Economia – (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010) pg. 23. 
29 Descartes, R. – Discurso do método – (Edição Coleção L&PM POCKET; v. 458, 2017), pg. 24.

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