Todo mundo que leva o campo das ideias a sério agora tem que lidar com a questão da “propriedade intelectual”, especialmente tendo em vista o advento das mídias digitais e a guerra do Estado aos supostos violadores dos direitos intelectuais de outros. A situação tornou-se imediatamente muito esperançosa, com mais compartilhamento de ideias do que nunca na história, e extremamente sombria, com o governo federal pressionando todos os provedores de serviços de internet a agirem como procuradores de uma lei injusta – e torcendo os braços dos países em desenvolvimento para adotar leis de PI draconianas, ao estilo ocidental.

Este debate, no entanto, envolve mais do que apenas questões de PI. A discussão em torno deste tópico esclareceu ainda outras questões, como o caráter de bens e propriedades, a existência e a centralidade de bens não-escassos na vida econômica e o papel da aprendizagem na evolução da sociedade. Isso explica, em parte, por que o tópico PI é tão quente: nos faz revisitar questões fundamentais sobre propriedade, posse, concorrência e outras áreas sobre as quais estávamos enganados. A seguir é um resumo de algumas ideias fundamentais que muitos de nós criticamos neste verão.

Escassez e bens escassos

“Porque bens tangíveis são propriedades?” Isto é uma questão central abordada por Stephan Kinsella em “Contra a Propriedade Intelectual”. A razão para a propriedade é:

A possibilidade de haver conflitos sobre esses bens por múltiplos atores humanos. A própria possibilidade de conflito sobre um recurso torna-o escasso, dando origem à necessidade de regras éticas para governarem seu uso. Assim, a fundamental função social e ética dos direitos de propriedade é impedir o conflito interpessoal em detrimento de recursos escassos.

Nesse ponto, podemos citar o “Teoria do Socialismo e do Capitalismo” de Hoppe, no qual Hoppe escreve com clareza singular: “só porque existe escassez existe um problema de formulação de leis morais; na medida em que os bens são superabundantes (bens “livres”), nenhum conflito sobre o uso de bens é possível e nenhuma coordenação de ação é necessária”. A lógica para esta percepção Hoppe extrai de Rothbard, e o termo ”bens livres” ele tira de Mises.

Hoppe escreve:

Para desenvolver o conceito de propriedade, é necessário que os bens sejam escassos, de modo que possam surgir conflitos sobre o uso desses bens. É a função dos direitos de propriedade evitar tais possíveis conflitos sobre o uso de recursos escassos, atribuindo direitos de posse exclusiva. A propriedade é, portanto, um conceito normativo: um conceito concebido para possibilitar uma interação livre de conflitos, estipulando regras de conduta (normas) mutuamente vinculantes em relação a recursos escassos.

Mesmo no caso do Jardim do Éden, onde a superabundância significaria que todas as coisas que sempre desejamos estariam ao nosso alcance, Hoppe explica que ainda haveria uma necessidade de direitos de propriedade. Isso ocorre porque o próprio corpo humano é escasso: escolhas sobre quem pode usá-lo e como ele pode ser usado necessariamente excluem outras escolhas. Não se pode simultaneamente comer uma maçã, fumar um cigarro, subir em uma árvore e construir uma casa. Da mesma forma, como Hoppe observa:

Por causa da escassez de nosso corpo e do tempo, mesmo no Jardim do Éden os regulamentos da propriedade teriam de ser estabelecidos. Sem eles, e supondo agora que mais de uma pessoa existe, que a sua gama de ação se sobrepõe, e que não há harmonia preestabelecida e sincronização de interesses entre essas pessoas, os conflitos sobre o uso do próprio corpo seriam inevitáveis. Eu poderia, por exemplo, querer usar meu corpo para beber uma xícara de chá, enquanto outra pessoa poderia querer começar um caso amoroso com ele, evitando assim que eu tomasse meu chá e também reduzindo o tempo restante para perseguir meus próprios objetivos por meio deste corpo. Para evitar tais possíveis confrontos, regras de posse exclusiva devem ser formuladas. De fato, enquanto houver ação, há uma necessidade para o estabelecimento de normas de propriedade.

Um direito de propriedade sobre nosso corpo escasso é uma pré-condição para a ação, mesmo em face de superabundância. Hoppe chega a dizer que o corpo é o “protótipo de um bem escasso”. Aqui ele concorda com o professor de Jefferson, Conde Destutt de Tracy: “a propriedade existe na natureza: pois é impossível que cada um não seja o proprietário de sua individualidade e de suas faculdades”.

A resposta à pergunta sobre o que torna meu corpo “meu” reside no fato óbvio de que isso não é apenas uma afirmação, mas que, para todo mundo ver, esse é realmente o caso. Por que dizemos “este é o meu corpo”? Para isso, existe um requisito duplo. Por um lado, deve ser o caso de que o corpo chamado ”meu” deve, de fato (de maneira intersubjetivamente determinável), expressar ou ”objetivar” a minha vontade. Prova disso, no que diz respeito ao meu corpo, é fácil o suficiente para demonstrar: Quando eu anunciar que levantarei meu braço, virarei minha cabeça, relaxarei em minha cadeira (ou qualquer outra coisa) e esses anúncios se tornam verdadeiros, então isso mostra que o corpo que faz isso foi de fato apropriado por minha vontade. Se, ao contrário, meus anúncios não mostrassem nenhuma relação sistemática com o comportamento real do meu corpo, então a proposição “este é o meu corpo” teria que ser considerada como uma afirmação vazia, objetivamente infundada; e do mesmo modo essa proposição seria rejeitada como incorreta se, após meu anúncio, meu braço não se elevasse, mas sempre o de Müller, Meier ou Schulze (caso em que seria mais provável que se considerasse o corpo de Muller, Meier ou Schulze “meu”). Por outro lado, além de demonstrar que minha vontade foi “materializada” no corpo chamado “meu”, é preciso demonstrar que minha apropriação tem prioridade em relação à possível apropriação do mesmo corpo por outra pessoa.

No que diz respeito aos corpos, também é fácil provar isso. Demonstramos isso mostrando que está sob meu controle direto, enquanto todas as outras pessoas podem se objetivar (expressar) em meu corpo apenas indiretamente, ou seja, por meio de seus próprios corpos, e o controle direto deve obviamente ter prioridade lógico-temporal (precedência) em comparação com qualquer controle indireto. Este último simplesmente decorre do fato de que qualquer controle indireto de um bem por uma pessoa pressupõe o controle direto dessa pessoa em relação a seu próprio corpo; assim, para que um bem escasso seja justificadamente apropriado, a apropriação de um corpo ”próprio” controlado diretamente já deve ser pressuposto como justificado. Assim se segue: Se a justiça de uma apropriação por meio do controle direto deve ser pressuposta por qualquer apropriação indireta de alcance maior, e se eu tiver controle direto do meu corpo, então ninguém, exceto eu, jamais poderá justificadamente possuir meu corpo (ou em outras palavras, a propriedade em / do meu corpo não pode ser transferida para outra pessoa), e toda tentativa de controle indireto do meu corpo por outra pessoa deve, a menos que eu tenha explicitamente concordado, ser considerada injustificada.

Mas vamos deixar claro o que não queremos dizer com o termo escasso no sentido de que se aplica a essa discussão. Algo pode ter preço zero e ainda ser escasso: uma torta de barro, uma sopa com uma mosca, um computador que não funciona. Enquanto ninguém quiser essas coisas, elas não são bens econômicos. E, no entanto, em sua natureza física, eles são escassos porque, se alguém os quisesse, e assim se tornassem bens, poderia haver disputas sobre sua posse e uso. Eles teriam que ser alocados ou por violência ou via mercado com base nos direitos de propriedade.

Tampouco a escassez se refere necessariamente ao fato de um bem estar em excedência ou em falta, nem se há poucos ou se são muitos. Pode haver um único “dono” de um bem que não seja escasso (um poema que acabei de pensar, o qual posso compartilhar com você sem você tirar de mim) ou um bilhão de proprietários de bens escassos (clipes que, apesar de onipresentes, ainda são um bem econômico).

Escassez também não se refere necessariamente apenas à tangibilidade, à capacidade de manipular fisicamente a coisa ou à capacidade de compreendermos algo com os sentidos; o espaço aéreo e as ondas de rádio são bens escassos intangíveis e, portanto, potencialmente mantidos como propriedade e, portanto, precificados, enquanto o fogo é um exemplo de um bem tangível de fornecimento potencialmente ilimitado.

Em vez disso, o termo escassez aqui se refere à possível existência de conflito sobre a posse de uma coisa finita. Isso significa que existe uma condição de controle contestável para qualquer coisa que não possa ser possuído simultaneamente: minha posse e controle excluem seu controle.

Replicação e Bens Não-escassos

Em contraste, existem bens não-escassos. Uma declaração clássica sobre eles vem do “Princípios Econômicos” de Frank Fetter:

Algumas coisas, apesar de indispensáveis ​​à existência, podem ainda, por causa de sua abundância, deixar de ser objetos de desejo e de escolha. Tais coisas são chamadas de bens gratuitos. Eles não têm valor no sentido em que o economista usa esse termo. Bens livres são coisas que existem em superfluidade; isto é, em quantidades suficientes não apenas para agradar, mas também para satisfazer todos os desejos que podem depender deles.

Um exemplo de um bem necessariamente não-escasso é algo em demanda que pode ser replicada sem limite, de modo que eu possa ter um, você pode ter um e todos nós podemos ter um. Esta é uma condição sob a qual não pode haver disputa sobre propriedade. Como Hoppe diz, sob essas condições, não haveria necessidade de normas que governassem sua posse e uso.

Esse status de não-escassez pode se aplicar a muitas coisas, mas sempre se aplica a itens não-finitos, ou seja, mercadorias que podem ser copiadas sem limite, sem nenhuma cópia adicional remover a cópia anterior e sem degradação na qualidade do bem copiado quanto ao original.

O próprio Thomas Jefferson fez a afirmação duradoura que distingue claramente os dois tipos de bens:

Se a natureza fez qualquer coisa menos suscetível do que todas as outras de propriedade exclusiva, é a ação do poder pensante, chamada ideia, que um indivíduo pode possuir exclusivamente, desde que ele a mantenha para si mesmo; mas no momento no qual é divulgada, ela se impõe à posse de todos, e o receptor não pode se livrar dela. Seu caráter peculiar também é que ninguém possui menos, porque todos os outros possuem o todo. Aquele que recebe uma ideia minha recebe instrução sem diminuir a minha; como aquele que acende sua vela na minha, recebe luz sem me obscurecer. Que as ideias se espalhem livremente de um para outro ao redor do globo, pois a instrução moral e mútua do homem, e a melhoria de sua condição, parecem ter sido peculiarmente e benevolentemente projetadas pela natureza, quando ela os fez, como fogo, expansível em todo o espaço, sem diminuir sua densidade em nenhum ponto, e como o ar o qual respiramos, nos movemos e temos nosso ser físico, incapaz de confinamento ou apropriação exclusiva. As invenções, assim, não podem, na natureza, serem submetidas como propriedade.

A ideia não é apenas a semente do pensamento iluminista. Santo Agostinho também notou a qualidade peculiar das palavras.

As palavras as quais profiro penetram seus sentidos, de modo que todo ouvinte as segura, mas não as retém de nenhum outro. (…) Não me preocupo em privar todos de algo que comuniquei apenas a um. Espero, ao contrário, que todos consumam tudo; de modo que, não negando nenhum outro ouvido ou mente, vocês levem tudo para si mesmos, mas deixem tudo para todos os outros. Mas para os fracassos individuais da memória, todos que vieram ouvir o que eu digo podem tirar tudo, cada um de um jeito diferente.

Imagine se as descrições de ideias de Jefferson e Agostinho se aplicassem a coisas finitas. Digamos que alguém possua um pão mágico. Ele poderia dar a um amigo o pão e outro magicamente apareceria em seu lugar, permitindo que ele mantivesse seu pão ao mesmo tempo. O próprio ato de entregá-lo criaria uma cópia exata dele. Um vizinho poderia fazer o mesmo. Potencialmente, todos no mundo poderiam ter um pão idêntico – todos igualmente deliciosos.

Este pão mágico constituiria então o que tem sido tradicionalmente chamado de bem livre ou o que agora chamamos de bem não-escasso – algo que pode ser possuído até o infinito e por um número ilimitado de pessoas sem deslocar ou degradar o original. Com bens livres, ou bens não-escassos, não há conflito sobre propriedade.

Você poderia dizer que tem direito de propriedade sobre o pão mágico, mas seria sem sentido porque qualquer um poderia “pegá-lo” reproduzindo-o. Não pode ser possuído no sentido tradicional. Eu poderia, claro, manter meu pão mágico em segredo e nunca deixar ninguém saber sobre ele. Mas isso em nada muda suas propriedades mágicas. Ele permanece sendo um bem que pode ser copiado sem limite. E minha capacidade de manter o segredo é resultado da minha propriedade – minha capacidade de controlar – sobre o recurso escasso que é meu corpo.

Sob essas condições, o status do pão mágico como um bem livre é devido à sua replicabilidade. Se não pudesse infinitamente replicado, se sua magia fosse embora, isso o tornaria um bem escasso. Uma vez que se tornasse público, haveria uma disputa sobre a propriedade daquele pão (se eu tiver, você não pode tê-lo).

“Bens não-escassos não precisam da ajuda dos preços para racionar sua disponibilidade. São presentes gratuitos que podem ser compartilhados em todo o mundo”.

Assim é com todas as coisas: se há uma disputa de soma zero sobre sua posse, ela é escassa; se não houver rivalidade sobre sua propriedade, e sua capacidade de ser copiada e compartilhada for infinita, ela não é escassa.

Isso soa fantasioso? No que diz respeito ao pão mágico, sim. Mas e se algo como o exemplo do pão mágico se tornar real? Ontem podíamos replicar informações com fotocopiadoras e imprimir qualquer número de cópias perfeitas com uma impressora a laser; e agora podemos copiar e reproduzir documentos e arquivos digitalmente. E se as chamadas impressoras 3D se tornarem difundidas? Estes são dispositivos que podem fabricar vários objetos materiais usando uma “receita”. Em princípio, pode-se ver um pão (ou carro) que ele gosta, encontrar ou criar um modelo ou uma receita para ele e ter uma cópia impressa usando sua própria impressora 3D, energia e matérias-primas.

Pode-se imaginar a polícia de PI impedindo as pessoas de usarem suas impressoras 3D para fabricar ferramentas e bens úteis com base na ideia de que isso é, de alguma forma, “roubar” a propriedade que ainda está na casa do proprietário.

De qualquer forma, por ora, a tecnologia para cópia e impressão 3D está em sua infância. Não é o caso das informações codificadas digitalmente. Por exemplo, considere um arquivo no seu disco rígido. Ele pode ser enviado por email, mas o arquivo não desaparece. Uma cópia perfeita desse arquivo aparece no e-mail de outra pessoa. Essa pessoa também poderia encaminhar (uma cópia) do arquivo para outra pessoa. Isso pode acontecer bilhões e trilhões de vezes sem comprometer a integridade do primeiro arquivo. Na verdade, esse arquivo é como o pão mágico, um bem não-escasso. Se o arquivo estiver em um servidor, ele poderá ser acessado por bilhões de pessoas, cada uma das quais poderia hospedar o arquivo da mesma forma até que ele se multiplique sem limite.

Considere o poder desse bem não-escasso. Esse arquivo pode conter um banco de dados com todas as transações financeiras do mundo no mês passado. O registro dessas transações não seria escasso. O arquivo pode conter imagens de todas as pinturas da National Gallery of Art. Essas imagens não seriam escassas. Ele poderia conter vídeos de todas as palestras de faculdade apresentadas nos Estados Unidos no semestre passado. Mais uma vez, sem escassez.

Tudo isso é possível e praticável. Nós experimentamos isso todos os dias. Nós fazemos isso todos os dias. Todos os arquivos na World Wide Web, a menos que tenham sido especialmente codificados de outra forma, constituem bens gratuitos.

Parece claro que estamos nos movendo para um mundo no qual presenciaremos a existência de um número massivo e crescente de bens que não são escassos, no sentido de que eles são potencialmente replicáveis ​​ao infinito. Esses bens estão fora dos limites estritos necessários para o racionamento. Não é possível haver conflitos, portanto, não há necessidade de tradicionais direitos de propriedade para eles.

Bens escassos e não-escassos

Uma maneira sensata de entender isso é classificar todos os bens como finitos e, portanto, naturalmente escassos ou não-finitos e, portanto, naturalmente não-escassos. Essa distinção aparece de tempos em tempos na história do pensamento. Os direitos de propriedade são essenciais para bens escassos. São esses bens escassos que servem como meios para ações, enquanto os bens não-escassos que podem ser copiados sem deslocar o original não são meios, mas guias de ação. Seria ridículo falar de algum tipo de “propriedade social” sobre bens escassos. Bens escassos só podem pertencer a uma única pessoa. Claro, você pode compartilhá-los, mas isso é apenas um meio de alocar um bem escasso que nada muda em relação à natureza intrínseca do bem. No final, todas as tentativas de socializar recursos escassos levam à propriedade estatal e ao conhecido caos associado a ela.

Mas vamos voltar ao pão, desta vez sem propriedades mágicas. E quanto à receita e habilidades que fizeram isso? A receita e as habilidades podem ser copiadas por qualquer pessoa. Qualquer um pode assistir e aprender. A receita pode ser compartilhada até o infinito. Depois que as informações na receita e as técnicas de produção são liberadas, elas são mercadorias livres, mercadorias não-escassas.

Quais são mais alguns exemplos de tais recursos naturalmente não-escassos? Uma pessoa pode espalhar uma ideia infinitamente nunca reduzindo ou degradando sua qualidade original. O fogo pode ser considerado outro exemplo (como Thomas Jefferson disse). Um fósforo pode acender um pedaço de madeira sem deslocar o fogo de sua origem. Tabuadas de multiplicação são outro exemplo: o professor da escola primária não “abandona” esse conhecimento ao transmiti-lo aos alunos. Uma imagem de qualquer coisa também se qualifica. Uma pessoa pode olhar para outra e memorizar o que vê, sem de alguma forma pegar ou substituir o original. O mesmo ocorre com músicas. Podem ser compartilhadas e replicadas ilimitadamente. Eu posso cantar uma música e você pode cantar a mesma música sem tirar a música de mim.

“Eu posso cantar uma música e você pode cantar a mesma música sem excluir minha possibilidade de cantá-la”.

Estes bens são todos não-escassos e, portanto, não requerem nenhuma economia. Uma vez liberados, eles não precisam ser precificados. Não há “cadeia de produção” ligada à sua reprodução ou alocação (por isso não há “estrutura de produção” para a disseminação de ideias).

Para assegurar, os bens não-escassos podem ser economizados e, assim, comercializados pelo racionamento dos meios escassos de sua distribuição. Por exemplo, um professor, cujo tempo e corpo são escassos, é pago para compartilhar ideias não-escassas. Isto é um serviço, mas uma vez que as ideias do professor são compartilhadas, elas entram no âmbito dos bens não-escassos. O que é pago não é a ideia em si, mas a apresentação, o tempo necessário para compartilhar-la, os serviços de trabalho de ensinar, os quais todos são bens escassos.

Verifica-se o mesmo com um livro ou artigo. O que é escasso é o meio através do qual a ideia é expressa, e é por isso que livros, artigos e acesso à internet custam dinheiro. As ideias transmitidas por esses meios, no entanto, são copiáveis ​​sem limite.

Este não é um insight aplicável apenas à mídias digitais. Isso é verdade, independentemente da tecnologia envolvida. Quer estejamos falando de um escriba trabalhando em um pergaminho no século VIII ou de um escritor trabalhando em um documento pela internet no século XXI, as ideias transmitidas nas palavras e a própria imagem das palavras são produtos não-escassos, enquanto o meio pelo qual eles são transportados é escasso. O alcance e a importância dos recursos não-escassos foram amplamente expandidos pela existência das mídias digitais.

Quanto a saber se um bem é naturalmente escasso ou não-escasso, o teste aqui é simples. Se o bem pode ser tomado (compartilhado) sem eliminar a possibilidade de seus outros usuários desfrutarem dele, é sempre não-escasso. Se tomar o original significa que ele não pode mais existir na posse dos usufruidores anteriores, é um bem escasso. Todos os bens se enquadram em uma das duas categorias. Todos os não-bens (coisas indesejadas, necessariamente uma categoria contingente) podem, é claro, ser similarmente classificados.

Simultaneamente, também é verdade que a maioria das coisas são conjuntos de bens escassos e não-escassos. Um livro é um texto não-escasso que transmite ideias não-escassas sobre papel escasso e ocupa espaço escasso em uma prateleira. Uma chave que abre uma porta é feita de metal escasso, mas seu funcionamento é devido à forma não-escassa do corte da chave, uma forma que é infinitamente copiável.

Um show da Lady Gaga é um corpo humano escasso auxiliado por instrumentos escassos e microfones produzindo música e som, que imediatamente se tornam não-escassos na performance e audição. Amarrar um sapato emprega laços escassos com mãos escassas guiadas por habilidades e técnicas replicáveis ​​(não-escassas).

Replicação e civilização

Bens não-escassos não precisam do auxílio de preços para racionar sua disponibilidade. São benesses gratuitas que podem ser distribuídas com todos. Quão importantes são esses bens? Como essa categoria abrange todo tipo de informação, arte, tecnologia (habilidades) e qualquer outra coisa que possa ser possuída e copiada sem que a possibilidade de seus prévios usufruidores de apreciarem esta coisa seja perdida, elas são de suma importância. Sem esses regalos, toda a aprendizagem, imitação e cultura mundial viriam a desmoronar.

Nós não somos verdadeiramente humanos sem fazer parte da civilização humana; e não há de haver civilização e progresso sem a acumulação e disseminação de conhecimento. Ser humano é fazer parte de uma sociedade em aprendizagem, uma sociedade comunicativa.

A existência do bem não-escasso é a base de todo progresso intelectual, a base do progresso tecnológico e artístico e, portanto, uma bênção para a civilização. É também o núcleo da empresa. Os empreendedores alcançam o sucesso primeiro imitando outros que tiveram sucesso. Suas experiências e ideias não-escassas são primeiro copiadas e depois aperfeiçoadas, com o objetivo de lucro. O exemplo de sucesso que empreendedores seguem é, por si só, um bem não-escasso. Qualquer pessoa, com os meios para fazê-lo, é livre para copiar a ideia de sucesso e replicá-la. O recurso não-escasso é o combustível do processo competitivo.

Em contraste, um bem escasso não pode ser compartilhado ilimitadamente. É imprescindível ele ser possuído e controlado por apenas uma pessoa de cada vez; até mesmo a tentativa de compartilhar implica na exclusão de outros poderem utilizá-lo. Para adquiri-lo, é necessário apropriar-se originalmente de recursos (homesteading) ou roubar, transformar ou adquirir contratualmente (comercializar) recursos já existentes. A comercialização é o que dá origem ao racionamento e à alocação pelo sistema de preços.

Mais uma vez, seria ilógico falar de socialismo em uma realidade com bens escassos, porque é fisicamente impossível imaginar dois proprietários simultâneos do mesmo bem escasso. No entanto, é possível falar de algo como “socialismo” para um bem que não é escasso por natureza, precisamente porque pode ser infinitamente copiado.

O bem não-escasso é privado enquanto não for revelado; deve permanecer em segredo. Se por caso o segredo for descoberto, ele torna-se um bem comum (ou socialmente compartilhado, se você quiser), porque todos que o encontrarem poderão usá-lo. A tecnologia tem criado cada vez mais bens que se tornaram parte da categoria não-escassa, e isso pode ser visto como uma das principais características do desenvolvimento tecnológico cada vez mais impressionante.

Austríacos sobre os “bens livres”

Os austríacos sempre reconheceram, às vezes apenas de maneira implícita, a existência do bem não escasso, que é precisamente o bem em questão quando se fala em propriedade intelectual. O livro de Menger lançado em 1871, “Princípios de Economia Política”, começa com a definição de bem que exclui a preocupação com a escassez. Algo é classificado com um recurso, na visão de Menger, quando é causalmente capaz de satisfazer uma necessidade humana. Esta é uma definição muito ampla.

Para que algo seja um bem, disse Menger, deve haver conhecimento humano dessa conexão de causa e efeito, junto com o comando sobre a coisa, para que a relação entre causa e efeito possa ser realizada. Entre esses bens, ele inclui boa vontade, conexões familiares, amizade, amor, fraternidades religiosas e científicas – todos os quais se enquadram na classe de coisas que podem ser replicadas sem deslocamento. Apenas mais tarde no capítulo de inicial, ao discutir a questão da propriedade, Menger introduz a noção de escassez e, portanto, a necessidade de economizar.

Ver a propriedade como uma subclasse sob a maior divisão de bens implica a existência do que Ludwig von Mises chamou de “bem livre” – algo que está “disponível em abundância supérflua dispensando que o homem economize”. Mises diz que embora “não sejam o objeto de qualquer ação”, são úteis e até mesmo essenciais para a produção. Dando o exemplo de uma receita, ele escreve que esses bens livres, ou bens não-escassos, prestam “serviços ilimitados”. Um bem livre “não perde nada de sua capacidade de produzir, não importa quantas vezes for usado; seu poder produtivo é inesgotável; não é, portanto, um bem econômico”.

Mas não é de menor importância: “Esses projetos – as receitas, as fórmulas, as ideologias – são o principal; eles transformam os fatores originais – humanos e não-humanos – em meios”. Ideias e informações são bens não-escassos, mas servem guias para a ação no uso de meios escassos, para transformar as coisas escassas no mundo para alcançar o fim desejado do agente. Como Mises escreveu: “A ação é uma conduta intencional. Não é simplesmente comportamento, mas comportamento gerado por juízos de valor, visando um fim definido e guiado por ideias relativas à adequação ou inadequação de meios definidos”.

Murray Rothbard elaborou: ‘Há um outro tipo único de fator de produção que é indispensável em cada etapa de todo processo de produção. Essa é a ‘ideia tecnológica'”. Rothbard ressalta que, uma vez que a ideia é divulgada, ela não precisa mais ser produzida. É um “fator de produção ilimitado que nunca se desgasta ou precisa ser economizado pela ação humana”. É precisamente isso que um bem não-finito é, um fator de produção ilimitado.

Frank Fetter também vislumbra que as próprias ideias são produtos não-escassos:

O ganho para o bem-estar geral, no entanto, só pode resultar quando as novas invenções são realmente incorporadas nas máquinas. Uma invenção é apenas uma ideia imaterial, e as máquinas nas quais as invenções são incorporadas são riquezas que têm um valor de capital. Ademais, um ganho pode resultar apenas quando a utilização das máquinas não é tão alta a ponto de absorver a maior parte do ganho de eficiência. Nem todas as invenções que poupam mão-de-obra exigem máquinas mais elaboradas ou mais caras. Algumas são apenas melhores métodos e não exigem mais equipamentos – ou até menos. Algumas são mais simples e mais baratas do que os procedimentos que substituem. Estes (a menos que patenteados) são bens livres, elevando a eficiência da produção “sem dinheiro e sem preço”.

Embora ele assuma a existência de direitos à patentes e não questiona a legitimidade destes, ele reconhece que métodos – que são meras receitas, um tipo de informação – são bens não-escassos (que ele chama de “bens livres”) que estão disponíveis gratuitamente e aumentam a eficiência e a produtividade – isto é, a menos que sejam patenteados, tornando-os artificialmente escassos.

Um dos ensaios mais longos e mais pesquisados ​​sobre esse assunto é de Eugen von Böhm-Bawerk, em seu artigo “Se os direitos legais e os relacionamentos são bens econômicos”. Nesse escrito, Böhm-Bawerk aponta várias características que os tornam bens econômicos, entre eles a posse física e “o poder de disposição e controle”. A noção de escassez como uma pré-condição para chamar algo de “bem econômico” é presumida, mas nunca declarada de imediato. No entanto, Böhm-Bawerk acrescentou elementos críticos à ideia do bem, observando que os serviços pessoais também devem ser incluídos nesta categoria. Se tais são verdadeiramente bens não é inerente ao próprio serviço, mas depende da resposta subjetiva a esse serviço, introduzindo assim um componente subjetivo a ideia de um bem. Aqui Böhm-Bawerk observa sagazmente a interação entre bens materialmente escassos e subjetivamente não-escassos:

Seja admitido que a alma do poeta deve ter originado pensamento e emoção, e seja admitido que somente em outra alma e através de poderes intelectuais esses pensamentos e emoções podem ser reproduzidos, mas o caminho de alma para alma conduz através do mundo físico para um trecho da jornada e nesse trecho o elemento intelectual deve fazer uso do veículo físico, isto é, das forças ou poderes da natureza. O livro é esse veículo material físico.

Como observa Joseph Salerno, “Böhm-Bawerk empregou o exemplo da produção e do consumo de um poema para ilustrar que o bem está inextricavelmente ligado ao processo de satisfação de desejos que atravessa e liga os domínios da objetividade e da subjetividade”.

Bens escassos, não-escassos, progresso e intervenção

Por que tudo isso importa? É interessante no nível da teoria, mas também criticamente importante como uma questão prática. Empresas dependem cada vez mais de uma compreensão clara da diferença entre bens escassos e não-escassos. Na recessão de 2008, por exemplo, o bust atingiu bens escassos, e é o setor de bens escassos que o governo está tentava estimular. Mas o setor dos não-escassos, que não está sujeito à cadeias de produção e, portanto, é resistente aos efeitos do ciclo econômico, continua a prosperar e não tem sido afetado pelas políticas macroeconômicas ruins (mas é afetado pela regulamentação da “propriedade intelectual”).

Instituições como o Google e o Mises Institute descobriram o segredo de distribuir produtos não-escassos (serviços de busca e livros digitais) e restringir as operações comerciais à alocação de apenas bens escassos (serviços de professores, livros físicos e espaço publicitário nas telas). Essa combinação de entregar bens não-escassos e vender bens escassos permitiu que ambas as instituições crescessem através do serviço.

Mas essa distinção também é extremamente útil para entender a teoria econômica. Ela esclarece a absoluta necessidade de direitos de propriedade e livre circulação de preços para todos os bens escassos – exatamente como os economistas clássicos disseram. Também ilustra a necessidade de eliminar completamente o controle ao acesso a bens não-escassos e permitir que o processo voluntário de aprendizado e compartilhamento siga seu próprio curso.

As intenções de Menger eram reconstruir a economia clássica em fundações mais firmes fundamentando a teoria da oferta e demanda dos preços e do cálculo monetário nas escolhas e ações dos consumidores e reparar sua superestrutura, curando a fenda entre a teoria de preços e a teoria da distribuição. Menger corajosamente proclamou sua intenção de classificar todos os ramos da economia sob uma teoria de preços reconstruída em seu Prefácio do Princípios de Economia Política, escrevendo “Eu dediquei atenção especial à investigação das conexões causais entre fenômenos econômicos envolvendo produtos e os correspondentes agentes de produção, não somente com o propósito de estabelecer uma teoria de preços baseada na realidade e colocar todos os fenômenos de preços (incluindo juros, salários, aluguel de terrenos, etc.) juntos sob um ponto de vista unificado, mas também por causa dos importantes insights que obtemos em muitos outros processos econômicos até o momento completamente incompreendidos” (ênfase acrescentada pelos presentes autores).

Bens não-escassos são uma grande cortesia da estrutura da realidade, um benefício para a humanidade, um vasto tesouro de recursos – ferramentas para tornar o mundo um lugar implacavelmente melhor.

O fracasso em entender a distinção entre bens escassos e intrinsecamente não-escassos também pode ajudar a explicar a persistência da ideologia socialista. Por exemplo, uma possível explicação do previsível impulso socialista de líderes religiosos, intelectuais e artistas é que seu trabalho primário consiste na produção e distribuição de bens não-escassos (redenção, ideias e arte) e que isso explica o fracasso das pessoas nessas profissões para chegar a um acordo com a implacável realidade da escassez.

Em síntese, a realidade nos dá dois tipos de bens, um tipo que exige alocação por meio de propriedades e preços e um tipo que pode ser infinitamente copiado. Na produção e distribuição de bens escassos, não há substituto para o mercado comercial. E a noção de que o governo deve sempre restringir bens não-escassos replicáveis ​​ou garantir proteção a um único produtor monopolista de bens não-escassos é contrária à liberdade, ao avanço material e à paz social.


Escrito por: Jeffrey Tucker (@jeffreyatucker) e Stephan N. Kinsella (@NSKinsella)
Traduzido por: Wallace Nascimento (@Wallace48597355)
Revisado por: Gabriel Barnabé (@GB_Barney01)
Revisão final por: Paulo Droopy (@PauloDroopy)

Confira o artigo original clicando aqui.

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