De “Mesa de Bar” a Palanque Político: Bolsonaro no Flow

Com seus quase 4 anos de duração, mais de 650 episódios e inúmeras polêmicas, o Flow Podcast começou com uma proposta simples, mas profundamente interessante. Sua intenção era trazer uma conversa de Bar para as telas, replicando o modelo do Joe Rogan Experience, um podcast de entrevista com suas bilhões de visualizações.

O modelo começou com a ideia de ser neutro, politicamente não engajado, tentando tirar o melhor das pessoas sem cair nos clichês gerais de movimentação política que costumamos ver nos podcasts. Se bem-sucedida, sua proposta levaria inclusive a uma nova espécie de jornalismo, na qual as histórias das figuras entrevistadas seriam o plano de fundo para conversas, algo muito mais amplo e aberto do que essas terras tupiniquins jamais presenciaram.

Tal terreno, longe de ser o tipo de lugar em que se poderia buscar apoio político, seria um lugar inóspito e de vulnerabilidades, uma verdadeira experiência humana de aprendizado, interação e humanidade. Um lugar do qual os políticos só poderiam correr, em virtude de suas inúmeras contradições. Afinal, o político não estaria numa redoma, mas em lugar onde a própria audiência poderia lhe perguntar qualquer coisa, inclusive aquelas coisas que ele preferiria esquecer.

E de fato, ao menos por um tempo, o flow podcast se provou como uma forma diferente de fazer conteúdo midiático e de construir audiência, preocupado mais com a essência da conversa do que com o componente político atrelado a ela. Entretanto, isso foi mudando pouco a pouco.

Quatro passos para o fim

Skylab e sua fala profética

O primeiro dos grandes passos para o fim foi o ocorrido na entrevista #92 com o Skylab. Nela, ele diz aos entrevistadores Monark e Igor (depois de uma fala em que Monark diz que os partidos desumanizam as pessoas) que não se pode despolitizar, que ali não era um botequim, que havia uma multidão olhando lá fora, que era um programa jornalístico e que a forma do programa ser de conversa livre não o fazia não ser jornalístico, que não podiam ser “dois moleques idiotas”, que ao invés disso era necessário ter responsabilidade pelo que se falava.

Ali a proposta geral do programa foi tratada com desprezo pelo convidado, indicando desde o início qual era a visão do establishment esquerdista, com direito a defesa do PT e tudo, sobre o crescimento de um programa “despolitizado”.

Entretanto, mesmo com as críticas de Skylab, o programa continou a crescer e se tornou referência para dezenas de programas, inclusive aumentando sua forma geral assumindo quadros como o Vênus Podcast, o À Deriva Podcast e o Rap, falando, entre outros. Foi reconhecido como um lugar de grandes personalidades e alcançou milhares de views simultâneas vez após vez.

O Lar da Esquerda e da Direita

Boulos, Ciro Gomes, Eduardo Bolsonaro, Gabriela Prioli, Kim Kataguiri, Arthur do Val, Marcos Pontes, Sergio Moro, Sargento Fahur, Nando Moura, Nicholas Ferreira, Fernando Haddad, Heni Ozi Cukier, Carla Zambelli, Joice Hasselmann, João Dória, Eduardo Marinho, Daciolo, Marcos Uchôa, Abílio Diniz, Paulo Kogos, Peter Turguniev, Raphael Lima, Tarcísio Freitas, Tabatá Amaral, João Amoedo, Eduardo Leite, Gabriel Monteiro, Zema, Celso Russomanno, Ruy Costa Pimenta, Marcelo Freixo, Deltan Dallagnol, Bené Barbosa, Abraham Weintraub, Fernando Ulrich, Samy Dana, Rodrigo Constantino, Márcio França, Fernando Holiday, Filipe Sabará, Luciano Hang, Sâmia Bonfim, Glenn Greenwald, Fabio Faria, Sleeping Giants, Eduardo Suplicy, Izzy Nobre, Renan Santos, Letícia Arsenio, David Miranda, Hélio Beltrão, Rodrigo Garcia, Crivella, Alessandro Molon, Leandro Narloch, Mandetta 

São só alguns dos MUITOS episódios de política do Flow, com uma lista que fala por si só como diversa, ideologicamente conflituosa e politicamente ativa de figuras da política nacional. Essa lista explica profundamente o tamanho da congruência de força política que o flow acumulou, com muitos milhões de views estritamente voltados ao lado político da sociedade.

O que era para ser uma conversa de bar, um ambiente difícil para a entrada de políticos, um lugar onde a neutralidade deveria reinar, foi se tornando pouco a pouco num fluxo interminável de concordâncias, a tal ponto que se parecia que em várias dessas conversas os apresentadores haviam mudado de lado, afirmando a opinião do convidado da vez, evitando grandes brigas e mantendo suas próprias opiniões inofensivas para o convidado.

Só havia um tópico que era precioso para o flow e que nem a esquerda nem a direita poderiam aceitar como permanecendo intocável. Sua defesa concisa e contínua da liberdade de expressão. E embora o flow já não fosse há muito uma conversa de bar, ainda era um lar para a liberdade de expressão.

Muito diferente do fatídico episódio do Podpah com o Lula, em que ficou claro que a conversa era uma conversa de admiradores, o público ainda podia encontrar respiros e comentários apolitizados na fala de Monark e Igor, sinceras expressões de discordância e debate. Entretanto, a política destrói tudo que toca e foi assim que a associação tremenda do Flow com ela estava fadada a ser o segundo passo.

Ifood, Racismo e Liberdade de Expressão

O terceiro passo em direção ao fim é bem característico do período de marcação ideológica de esquerda que se seguiu após esse episódio do Skylab e da defesa da liberdade de expressão. Para entender o contexto:

https://twitter.com/monark/status/1455188114591391747?s=20&t=LxEQk1RwnnsP0b2VF6iwcA
https://twitter.com/monark/status/1455188120127803393?s=20&t=LxEQk1RwnnsP0b2VF6iwcA

Aqui, Monark fez uma defesa simples da Liberdade de Expressão e a pôs em termos de uma reação social necessária e não de um escopo positivista meramente formalístico, que tem a intenção de moralizar a sociedade ao fingir que os problemas não existem. Uma defesa até trivial, mas que está tão distante do eterno vigiar de condutas e da opressão burocrática sobre a vida privada que se tornou a palavra do dia na boca da esquerda brasileira que ele pareceu radical.

Nessa situação, já estava desenhado o cancelamento posterior que ele viria a sofrer, com o Ifood cancelando seu patrocínio em virtude desse episódio. Primeiro com uma nota ácida e crítica, dizendo com todas as palavras que o que estava acontecendo era um ato de discriminação e depois, para evitar processos, com uma nota menos ácida e em conjunto.

Nota do Ifood

O propósito do iFood é alimentar o futuro do mundo promovendo mudanças e impactando positivamente a sociedade, por isso estamos encerrando a nossa relação comercial com o Flow. Acreditamos que não é mais possível ser parte de uma sociedade desigual, por isso repudiamos qualquer tipo de preconceito ou ato de discriminação. A empresa assumiu compromisso público de ser protagonista na promoção de mudanças urgentes que favoreçam a diversidade e a inclusão O iFood segue firme nesse propósito e vai continuar promovendo ações (internas e externas), incentivando a mudança de comportamentos e se posicionando diante de situações que vão contra todo o propósito de diversidade e inclusão da companhia.

Esse episódio foi com certeza o prelúdio da sequência quase interminável de ataques que ele receberia da esquerda cotidianamente, usando de pretexto sua opinião sobre liberdade de expressão. E acreditamos que fala por si só.

O Partido Nazista e a Liberdade de Expressão

O quarto e último passo importante para entender o que aconteceu com o Flow Podcast é sem sombras de dúvida o episódio #545. Nele, Monark defende a existência de um Partido Nazista, reconhecido pela lei. Se o indivíduo quisesse ser “antissemita”, ele deveria poder ser.

Essa foi a reação dos Estúdios Flow:

A questão aqui é entender que o que aconteceu era parte significativa da opinião do próprio Flow. Ela era apenas a extensão de uma série de “premissas” particulares para uma conclusão final dentro do arcabouço geral do que é uma democracia.

A- O partido é a forma geral de expressão social.

B- O poder nocivo das falas só pode ser percebido através da expressão social.

C- É preciso que falas nocivas sejam identificadas socialmente para que possam ser removidas.

D- O Nazismo é uma fala nociva.

E- O Nazismo precisa ser identificado socialmente.

F- Para que o nazismo seja identificado socialmente ele deve ser expressado socialmente.

G- O Partido Nazista deve existir.

Se você assumir as premissas iniciais, dificilmente discordará da forma geral da conclusão. E foi isso que o Monark fez. É lógico que o problema geral aqui não é com a liberdade de expressão, mas com a crença de que existe um pó mágico no partido que o torna a expressão máxima da coletividade e seus candidatos e eleitos os representantes últimos da opinião social. Para mais, confira a defesa parcial realizada pela Universidade Libertária acerca do caso monark.

Em suma, o problema do monark não estava em sua defesa da liberdade de expressão, não estava em excesso de libertarianismo, mas em sua antiga perspectiva democrática. O pior desse episódio é que não foi apenas a esquerda que se opôs a ele, mas a direita como um todo se colocou numa posição de sinalização de virtude oportunística.

As Consequências e o Palanque

O resultado foi a retirada do Monark do flow e um cuidado acentuado em cada uma das falas que inclusive fez com que o Igor preferisse não contar com o monark como co-host do episódio em que Bolsonaro irá participar no dia 08/08, mesmo dia de publicação dessa coluna, as 19:00.

https://twitter.com/monark/status/1556691961314254854

E a ida do Monark para o Rumble está cada vez mais ligada a pauta da liberdade de expressão e a partes específicas da direita, ideologicamente ligada a Alt-right, muito distante do componente neutro e de “conversa de bar” que o flow foi um dia. Na verdade, cada vez mais o flow é um lugar não apenas confortável para a política, mas sobretudo uma oportunidade para angariar votos e visibilidade, algo que poderia ser dito com poucas ressalvas de todos os milhares de podcasts do tipo.

A solução? Enquanto a patrulha ideológica persistir nas mentes daqueles que tem medo de ter uma conversa de bar, a proposta inicial dessa sua fase na internet, a conversa de bar não será possível, afinal que bar é esse que os envolvidos na conversa, muitas vezes bêbados e de outra forma despreocupados, precisam se incomodar profundamente com cada palavra dita e cada reação do público? As premissas fundamentais do bar não mais existem, talvez nunca tenham existido, mas definitivamente o destino final do Flow não precisava ser o de se tornar um palanque. Afinal, o destino final da conversa de bar é o bar.

A liberdade de expressão, a apolítica, a capacidade da sociedade de simplesmente ter opiniões diferentes entre si, a própria forma de interagir verdadeiramente despreocupado, todas essas coisas estão em jogo ultimamente. É, sem sombra de dúvidas, o maior ataque a todos esses valores quando aqueles que se propõe a os representarem se encontram rendidos e fragilizados. Que venham tempos melhores!

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