Impérios Contemporâneos – O Império Oligárquico Chinês

Um pouco de história

O Império embrionário surgiu na costa leste do atual território. Uma das civilizações mais antigas da humanidade, após passar por uma gradual perda de poder e influência do governo central, favorecendo os governantes das províncias, a dinâmica estabelecida entrou em colapso, resultando no longo ciclo de intermináveis batalhas conhecido como o “Período dos Estados Guerreiros”.

Os diferentes reinos agora independentes lutavam entre si pela supremacia, mas estavam todos em níveis parecidos de capacidade bélica, o que levou a conflitos demasiadamente longos por terem se tornado verdadeiras guerras de atrito. Tudo mudou quando reformas profundas foram implementadas no reino de Qin. A militarização completa da nação lhe deu margem contra os adversários, o que resultou em sucessivas vitórias e, após literais dezenas de guerras travadas entre vizinhos, a tão almejada unificação. Nascia uma nova China, nome derivado do reino vencedor de Qin.

A dinastia seguinte, Han, viu o contato com o ocidente ser progressivamente reforçado. Com a descoberta de um grande volume de comércio internacional para seus produtos e de poderosos reinos a oeste, a dinastia chinesa estabeleceu contato com os povos da Ásia Central e Oriente Médio, no que ficou conhecido como o evento de abertura das Rotas da Seda. Para proteger sua rota comercial, a Grande Muralha, construída para proteger o território dos povos nômades do norte, foi estendida e novos territórios conquistados. Tão importante se tornaram essas rotas terrestres que seu fechamento, muitos séculos mais tarde, foi um dos principais motivos para o início da era das Grandes Navegações.

Ao longo de sua história, a China, tendo inicialmente se estabelecido na costa leste de sua atual configuração, se expandiu para o sul e oeste, conquistando vastas extensões territoriais no continente Asiático. Seu longo império, estabelecido ainda na época que presenciava o legado das conquistas de Alexandre, o Grande, foi apenas desfeito no início do século XX de nossa Era.

O século XX e a ascensão do partido comunista

O governo nacionalista de Chiang Kai-Shek recorreu à impressão massiva de dinheiro para financiar a guerra de 1937 contra o Japão e a guerra civil de 1946 contra os comunistas de Mao Zedong. De acordo com a Foundation for Economic Education, de 1937 a 1948, o que eram 3,6 bilhões de yuans em circulação se tornaram 5,1 quatrilhões.

Após o término da Segunda Guerra Mundial, Chiang Kai-Shek enviou tropas para ocupar o norte do Vietnã. No entanto, com a retomada da Guerra Civil, a maior parte do exército foi destacada para lutar contra a força comunista. Já enfraquecidos pelos combates da Segunda Guerra, as forças nacionalistas não eram mais capazes de frear o avanço vermelho pelo país. A inflação, a corrupção do governo, bem como as promessas comunistas em um país pobre e arrasado pela fome e pela guerra, acabaram por levar o apoio popular na direção de Mao.

Taiwan havia sido cedida em 1895 aos japoneses, após a derrota na primeira guerra sino-japonesa. A China tomou a ilha novamente em 1945, após a Segunda Guerra Mundial. Os comunistas venceram em 1949 e assumiram o controle em Pequim, sendo proclamada a República Popular da China. Chiang Kai-Shek, e o que restou do partido nacionalista, fugiu para Taiwan e proclamou independência. Essa divisão permanece até os dias atuais.

Mesmo sob o novo regime, o expansionismo não tardou a retornar. O império vive! A agora República Popular da China anexou o Tibete na década seguinte. Chamada pelo Partido de uma “Libertação pacífica”, os eventos decorreram da tentativa por parte do governo do Tibete de obter reconhecimento internacional e de esforços para modernizar suas forças armadas. O governo do Tibete permaneceu sob a autoridade do Partido até a revolta tibetana de 1959, quando o Dalai Lama foi forçado a se exilar na Índia e o governo acabou por ser dissolvido.

Relatório das capacidades atuais

Avanço militar

Os gastos militares chineses são crescentes ano após ano. As estimativas mais recentes apontam para algo em torno de US$200 bilhões. O montante ainda é muito inferior ao gasto anual dos Estados Unidos, mas, por apresentar foco diferenciado, não contendo, por exemplo, os elevadíssimos custos que os americanos incorrem com sua “Guerra ao Terror”, não deve apenas essa métrica ser aplicada para motivos de comparação.

Estima-se que sua força militar total seja superior a 2 milhões de combatentes, disseminados pelo exército, marinha, força aérea, força de foguetes, forças de apoio estratégico e forças conjuntas de logística e segurança. Em sua força aérea, mais de 800 dos 1.500 caças já são considerados de quarta geração, no mesmo nível dos ocidentais, também contando com caças e bombardeiros stealth em serviço ou em desenvolvimento. A China avança no desenvolvimento e testes de suas armas hipersônicas, estando nesse ponto mais avançada que os americanos.

Imagens provenientes dos satélites ocidentais revelam a expansão do arsenal nuclear chinês, com a construção de novos silos de mísseis balísticos. Seus mísseis intercontinentais DF-5 e DF-41 podem atingir quase todo o território continental dos EUA, com o DF-41 sendo capaz de carregar até 10 ogivas, cada uma atingindo um alvo diferente.

Os satélites espiões chineses são oficialmente classificados pelo governo como para experimentos científicos, planejamento urbano, estimativa de produção agrícola e prevenção de desastres. Se alguém de fato acredita nisso, é uma questão em aberto. Os mais modernos possuem a capacidade de retornar imagens com uma resolução de 10 centímetros por pixel.

Projeção de poder naval

Para rivalizar com a capacidade americana, a China está construindo embarcações em ritmo acelerado. Atualmente, a marinha chinesa já é a maior do mundo, com 355 navios de guerra e submarinos, se expandindo de forma equivalente a toda a marinha francesa a cada quatro anos. Nos últimos dez, foram introduzidos 150 embarcações. Em 2030, espera-se que a Marinha do Exército de Libertação Popular aumente sua frota para 425 embarcações de guerra.

Porta-aviões chinês Liaoning. Foto por: Ministério da Defesa do Japão, Escritório da Equipe Conjunta (CC BY 4.0)

O país está nos estágios finais da construção e testes de seu terceiro porta-aviões, o primeiro projetado e fabricado internamente. Diferentemente dos dois primeiros, o novo porta-aviões da China utilizará um sistema de lançamento de catapulta eletromagnética, o que possibilitará o lançamento de aeronaves mais pesadas. Mesmo sendo um grande avanço para as capacidades militares do país, ele ainda será movido a energia convencional, em vez de nuclear.

Seus cruzadores Tipo 055 são equipados com 112 células de mísseis de sistema de lançamento vertical. Seus submarinos Tipo 094 são armados com 12 mísseis nucleares JL-3, capazes de atingir o território continental dos Estados Unidos a partir do Mar do Sul da China, com seu alcance de mais de 10.000 km. Cada míssil carrega três ogivas que podem atuar de forma independente. Porém, enquanto a frota de submarinos de ataque dos EUA é totalmente movida a energia nuclear, a frota chinesa possui a maioria dos seus aidna movidos à propulsão comum.

A marinha chinesa já é hegemônica no Mar do Sul, contudo, no cenário global, não é capaz de projetar o poder como a americana. Essencial para esse propósito é a construção e operação de bases militares para o rearmamento, reabastecimento e reparo de sua frota em diferentes continentes. Em 2017, a China construiu sua primeira base no país africano de Djibuti, na rota do Canal de Suez. Djibuti também conta com bases de outros países, incluindo uma dos Estados Unidos.

Submarinos Tipo 094, armados com 12 mísseis nucleares capazes de atingir os Estados Unidos.

Vigilância submarina

Inicialmente construído para limitar a ameaça soviética durante a Guerra Fria, a rede de vigilância submarina americana está passando por atualizações para elevar suas capacidades de espionagem e detecção de submarinos e embarcações. A ameaça chinesa é o motivo.

Os cabos são dotados de hidrofones, instalados em locais secretos. Além disso, há navios que carregam microfones semelhantes. Sua missão é fornecer vigilância acústica marítima global, fundamental para a proteção contra a ameaça representada pela sabotagem submarina de fibra óptica e dutos de combustível, além de método preventivo contra ataques a navios que navegam em águas contestadas ou territoriais.

A Marinha Americana está construindo novas versões móveis e miniaturizadas de seus equipamentos de vigilância que podem ser implantadas em contêineres de carga carregados em qualquer embarcação de convés plano, permitindo que navios comerciais realizem a vigilância para o governo, disso sabendo ou não. Ainda, a Marinha americana recentemente adquiriu um sistema de detecção de unidade móvel que pode ser lançado clandestinamente em locais estratégicos no fundo do oceano, de onde escutam a movimentação de submarinos inimigos.

A China, por sua vez, está trabalhando em seu próprio programa de espionagem marítima, batizado de “Grande Muralha Submarina”.

Reivindicação do Mar do Sul

Por sua reivindicação da quase totalidade do Mar do Sul, a China militarizou totalmente ao menos três das várias ilhas que construiu na região. As ilhas artificiais chinesas foram construídas em atóis de coral, com danos ambientais extensos. As ilhas funcionam como bases militares extraterritoriais, armadas com sistemas de mísseis antinavio e antiaéreo, dotadas de longas pistas de pouso, equipamentos de interferência e caças de combate. Em resposta, a marinha americana constantemente envia navios e aeronaves para patrulhar e região e promover o que chama de “livre navegação internacional”, o que comumente coloca as duas forças em encontros tensos. As novas bases em águas internacionais criam um amortecedor para o litoral sul da China, também elevando a pressão sobre Taiwan.

O governo americano firmou um acordo para vender à Austrália tecnologia militar, reforçando as capacidades aliadas no Pacífico. O país receberá, por meio de sua aliança de segurança, submarinos de propulsão nuclear dos Estados Unidos.

Multiplicam-se também os relatos nos quais a marinha, a guarda costeira e a frota paramilitar da China intimidam, confiscam a carga, espancam os marinheiros ou mesmo destroem barcos de pesca de nações vizinhas. O governo chinês mantém que os mais de 3 milhões de quilômetros quadrados do Mar do Sul “são território chinês desde os tempos antigos… deixados para nós por nossos ancestrais”.

A China foi criticada após imagens vazadas mostrarem um de seus navios da guarda costeira utilizando um canhão de água contra um barco pesqueiro filipino. Com os estoques de pescado sendo reduzidos pela pesca intensiva, os pescadores desses países necessitam se aventurar em águas mais longínquas, o que os coloca em confronto direto com as forças chinesas.

A Corte Internacional Permanente de Arbitragem em Haia decidiu em 2016 que a China não possui base legal para reivindicar direitos históricos sobre a maior parte do Mar do Sul. O país, claro, ignorou a decisão. Mera coincidência para a “reivindicação histórica” são os trilhões de dólares em mercadorias que passam por esse mar estratégico anualmente, além de suas ricas reservas de petróleo.

Militarização digital

As potências cibernéticas desenvolvem e aperfeiçoam suas técnicas de penetração e defesa, pois sabem que, em um eventual cenário de conflito, sua infraestrutura será atacada primeiramente por essa via. Com a integração cada vez maior da internet na vida cotidiana, um atacante habilidoso tem a possibilidade de vencer um conflito antes do primeiro tiro ter sido disparado. Por meio de ataques dessa natureza, sistemas de purificação de água podem ser comprometidos, sistemas de geração e distribuição de energia elétrica podem ser interrompidos, redes de satélites retiradas do ar, sistemas de comunicação sofrendo interferência ou sendo totalmente comprometidos, equipamentos industriais vulneráveis sendo destruídos, movimentações em contas bancárias, retiradas de dinheiro e movimentações financeiras, incluindo em criptomoedas, limitadas ou indisponíveis, hospitais, grandes empresas e servidores militares invadidos, o conteúdo de seus servidores simplesmente deletados, etc. Um ataque de grandes proporções poderia fortemente enfraquecer as capacidades de um país de se defender e lutar em uma guerra. As potências militares sabem disso.

Além de espionagem, softwares maliciosos destrutivos possivelmente já estão nos servidores de infraestrutura crítica, apenas esperando seus comandos de ativação ou, por sorte, para o país onde se encontram dormentes, serem descobertos; o que vier primeiro.

Como faz o governo americano pelo uso de sua posição privilegiada, o governo chinês, por meio do crescimento de suas empresas de tecnologia, competitivas também pelos preços muitas vezes mais acessíveis, se infiltra cada vez mais nos países do ocidente e coleta vastas quantidades de dados.

Os telefones da Xiaomi, por exemplo, incluem módulos de software projetados especificamente para o envio de dados a servidores acessíveis às autoridades chinesas, tendo sido recentemente descoberto que alguns modelos contêm listas baixadas sem o consentimento do usuário para censurar mídias relacionadas a tópicos que o governo chinês considera sensíveis ou indesejáveis. Caso não modificado, os dispositivos constantemente enviam os dados pessoais dos usuários para servidores na China. A preocupação com o vazamento de dados sensíveis ao inimigo aparece como a principal razão das tentativas de banimento de eletrônicos chineses em uso pelos integrantes do governo americano.

Como o progresso tecnológico do século XXI está sendo definido pela evolução dos microprocessadores e miniaturização dos transistores, na tentativa de limitar o avanço chinês, o governo americano tenta barrar o acesso às mais recentes inovações na área. Os EUA proibiram a exportação da versão mais recente do A100 e dos chips de GPU H100, bem como máquinas litográficas avançadas de fabricação de chips. As sanções impossibilitam gigantes como a Huawei de fabricar seus melhores produtos.

As novas medidas também incluem proibições aos cidadãos americanos e portadores do green card que pretendem trabalhar em determinadas empresas chinesas de chips, além da necessidade de licenças para empresas americanas que pretendem vender certas tecnologias para uma lista de empresas chinesas de interesse. Essas medidas, como esperado, estão criando um mercado paralelo de compra e venda de chips.

Pode-se brevemente pensar que o interesse do governo chinês esteja limitado à espionagem externa, mas isso não é verdade. Tão importante quanto é a vigilância do próprio povo. Conformidade e cumprimento das leis impostas são tão importantes quanto a garantia os interesses externos. Para esse propósito, como no caso dos Estados Unidos, além das empresas estatais, empresas e infraestruturas privadas são cooptadas.

Um exemplo é o superpopular aplicativo WeChat. Unindo diferentes funcionalidades, o aplicativo é extensamente utilizado no dia a dia dos cidadãos da China. Com ele, você pode conversar, interagir com amigos e grupos, realizar pagamentos e demais transições financeiras, utilizá-lo como documento de identidade, para dar entrada em procedimentos legais, etc. Com tamanho nível de centralização, uma gigantesca quantidade de dados é adquirida de seus usuários. As consequências são fáceis de perceber. O governo monitora as interações no app, sendo, por exemplo, os registros de conversas utilizados como provas em ações criminais. Indivíduos são presos apenas por combinar demonstrações contra os interesses do governo pelo aplicativo. Todas as movimentações financeiras também são facilmente monitoradas.

Em localidades como Shenzhen e Shenyang, é possível encontrar sistemas de outdoors e câmeras com inteligência artificial que, assim que um indivíduo realiza alguma pequena infração, como atravessar a rua de forma descuidada ou ilegal, quando o sinal ainda está vermelho para o pedestre, por exemplo, ainda no meio da rua, seu rosto, nome e parte do número de identidade aparecem no outdoor para expô-lo à vergonha pública.

Os semicondutores de Taiwan

Não apenas Taiwan é uma porta de entrada para o Pacífico, mas uma vergonha para um país que deseja ser uma potência mundial e não é capaz de conquistar uma ilha tão próxima de seu território, mesmo a reivindicando por décadas. Um detalhe muito relevante, nem sempre apreciado, é a ilha ser a sede de uma das mais importantes empresas do planeta: a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC). Peça central na produção em massa de semicondutores avançados, a empresa está muito avançada diante dos concorrentes. Esse fato incentiva os Estados Unidos a interferir na situação geopolítica na região e “garantir a proteção da liberdade e autonomia da ilha”.

Como resposta às tensões crescentes, os Estados Unidos, além de aumentarem a venda de armas para Taiwan, que está modernizando suas forças armadas, firmaram um acordo com a empresa para a construção de uma fábrica de US$ 40 bilhões no Arizona, programada para entrar em operação em 2025. No entanto, as obras estão em atraso, com trocas de acusação de ambos os lados para justificá-lo. Não facilita a situação o Arizona ser um dos estados-chave nas eleições americanas do ano que vem, com a construção da fábrica sendo uma peça na campanha eleitoral. Isso é, caso o projeto seja bem-sucedido. O escrutínio tenderá a aumentar no próximo ano. Ainda, a empresa não possui planos para embalar os produtos nos EUA, eles ainda necessitando finalizar o processo produtivo em Taiwan, o que ainda é um ponto em debate.

A Europa também busca uma planta fabril em seu solo, mas a empresa teme que, com sua expansão fora de Taiwan, a ilha perca sua posição privilegiada e se torne mais vulnerável ao ataque chinês futuro.

A economia como arma

Nos últimos 40 anos, a China introduziu uma série de reformas de mercado para abrir rotas comerciais e fluxos de investimento, retirando centenas de milhões de pessoas da pobreza. Após a morte de Mao, em 1976, as reformas introduzidas na China, lideradas por Deng Xiaoping começaram a remodelar a economia. Os camponeses receberam o direito de cultivar seus próprios lotes, o que rapidamente melhorou os padrões de vida e diminuiu a escassez de alimentos. Em apenas algumas décadas, mesmo com liberações parciais, centenas de milhões foram retirados da pobreza; provando de uma forma marcante, no que ficou conhecido como “milagre econômico chinês”, ser o estado o mantenedor da miséria em um mundo de constante progresso material. Contrariamente ao pensamento de muitos, a China não é um exemplo onde a intervenção estatal deu certo, e sim, um que claramente mostra o quão destrutivo ele pode ser; quanto o estado com sucesso restringiu o progresso de seu próprio povo.

As portas se abriram para o investimento estrangeiro quando os EUA restabeleceram laços diplomáticos em 1979. Os países industrializados, ansiosos para aproveitar a mão de obra barata e os baixos custos de aluguel, inundaram o país com recursos financeiros. A China se tornou, assim, uma grande fábrica global.

Os chamados pelos críticos míopes de “salários de miséria” foram abrindo espaço para melhores condições de vida, fenômeno natural em cenários de crescimento mais livre. O fortalecimento da economia fez elevar o padrão de vida do povo, agora com novas demandas consumidoras.

Quanto maiores as reformas orientadas para o mercado, maiores serão os crescimentos econômicos alcançados. Isso não deveria ser nenhuma surpresa. É relativamente comum o pensamento que estipula a economia como um jogo de soma zero: para alguém ganhar, é necessário alguém perder. Isso é falso, contudo, simplesmente pelo fato do “estoque de riqueza” não ser algo fixo, mas crescente ao longo do progresso humano. A China é um excelente exemplo para a eliminação dessa falácia. Atualmente, o país é o segundo do mundo em número de bilionários, atrás apenas dos Estados Unidos; Pequim é lar de mais bilionários que Nova York.

Não que o Partido tenha feito isso de bom coração. Na verdade, eles estavam temerosos com sua capacidade de perpetuaçãode poder caso o estado das coisas fosse mantido. Agora, com o novo potencial conquistado, trabalham para utilizá-lo a seu favor. O governo chinês percebeu que sua nova potência econômica pode ser utilizada como arma contra países militarmente mais fortes, bem como para avançar suas reivindicações com relação a seus vizinhos.

Especificamente em Taiwan, a capacidade chinesa de penetrar diretamente em seu mercado em muito se elevou a partir do ano 2000, quando o presidente da ilha retirou a proibição de 50 anos de comércio e investimento direto com a China continental. Com isso, a China rapidamente se tornou seu maior parceiro comercial, também ativamente apoiando o Partido Kuomintang, pró-unificação.

O uso do poder econômico como arma de dissuasão foi visto, por exemplo, no ano de 2010, quando a China bloqueou as exportações de todos os minerais refinados de terras raras para o Japão em resposta à apreensão de um navio chinês e à detenção de seu capitão, no contexto da disputa por soberania sobre a cadeia de ilhas Senkaku. Pressionado, o Japão liberou rapidamente o capitão detido. Após a proibição, gigantes industriais japoneses, como a Hitachi e a Toyota, transferiram suas fábricas para a China.

Outro caso envolveu a Coreis do Sul que, com intenção de participar do programa de mísseis THAAD, liderado pelos EUA, viu uma de suas principais lojas de departamentos ser expulsa do mercado chinês, seu segundo maior mercado. A Coreia do Sul, então, reverteu sua decisão, anunciando que não participaria de qualquer sistema de defesa antimísseis regional dos EUA e nenhuma aliança trilateral com os EUA e o Japão.

Ou ainda quando, em resposta ao navio da marinha filipina que tentou deter os barcos de pesca chineses perto de Huangyan Island, outro território disputado, a China proibiu a importação de 15 contêineres de bananas do país, seguida da proibição de outras frutas e legumes, o que fortemente afetou os agricultores locais.

A nova Rota da Seda

Percebendo a utilidade do meio econômico para projeção de seu poder global, bem como por saber não ser sustentável permanecer indefinidamente fundamentada no modelo que a fez crescer até aqui, o governo chinês lançou a iniciativa Belt And Road.

A iniciativa é um dos projetos de infraestrutura mais ambiciosos da história humana. Lançada em 2013, a vasta coleção de investimentos em infraestrutura e comércio tinha o objetivo de integrar o Leste Asiático e a Europa, mas o projeto se expandiu para abarcar outros continentes, como África e América Latina.

O Partido pretende com isso expandir o uso da moeda chinesa e influência política pelo mundo. A China precisa de novos mercados consumidores para seus produtos, para apoiar sua economia baseada na exportação, também almejando aprofundar a dependência global de si mesma. A iniciativa almeja fortalecer a infraestrutura das rotas terrestres e marítimas que ligam os países e continentes, bem como desencadeia a necessidade de reforçar sua presença militar para proteger seus interesses crescentes no exterior.

Até o momento, 147 países assinaram projetos ou indicaram interesse em participar, países que conjuntamente representam dois terços da população mundial e 40% do PIB global. Estima-se que as despesas totais da China possam chegar a US$ 8 trilhões para realizar sua visão.

Desde 2000, Pequim investiu US$ 30 bilhões em infraestrutura portuária no exterior por meio de empréstimos e subsídios em 78 portos em 46 nações de baixa e média renda. Esse gigantesco volume de investimentos é acompanhado por um também gigantesco volume de dívidas.

Atualmente, há mais de 40 países de baixa e média renda com exposição aos credores chineses superior a 10% de seu PIB. Djibuti, Laos, Zâmbia e Quirguistão chegam a 20%. Essa situação gera instabilidade econômica neses países, o pagamento da dívida consumindo uma quantidade cada vez maior da receita tributária, bem como drenando suas reservas em moeda estrangeira. A China tem relutância em perdoar as dívidas. Foi também descoberto que os tomadores de empréstimo chineses são obrigados a colocar dinheiro em contas ocultas de garantia, o que prioriza a China frente aos demais credores a serem pagos.

Em verdade, muitos empréstimos são destinados a projetos favorecidos por políticos antes de eleições importantes, com alguns fazendo pouco sentido econômico e estando repletos de problemas. Exemplos são um aeroporto no Sri Lanka, construído na cidade natal do presidente, sendo tão pouco utilizado que elefantes foram vistos na pista. Ou uma usina elétrica no Paquistão que precisou ser fechada por receio que pudesse entrar em colapso. Ou ainda as rachaduras que estão aparecendo nas usinas hidrelétricas de Uganda e Equador.

A Belt and Road é utilizada diretamente como arma econômico-política. Na Ásia, a China e a Índia compartilham uma grande fronteira terrestre em disputa. Em agosto deste ano, o governo da China divulgou sua nova edição oficial de seu mapa padrão, que continua a mostrar todo o estado de Arunachal Pradesh e a região de Aksai Chin dentro das fronteiras do país. O mapa também renomeia lugares em Arunachal Pradesh. A China, como qualquer império ao longo da história, tem como objetivo desacelerar a crescente influência de seu país vizinho e, para isso, viu na Belt and Road a possibilidade de cercar o território vizinho utilizando seu poder econômico. O Corredor Econômico China-Paquistão é o principal projeto nesse contexto. Índia e Paquistão também possuem território disputado e uma rivalidade antiga, sendo esse o principal motivo de ambos terem desenvolvido suas armas nucleares. Além do Paquistão, a China cresce sua influência no Nepal, Bangladesh, Myanmar e Sri Lanka, circundando o território indiano.

Genocídio uigur

Grupos de direitos humanos acreditam que a China deteve mais de dois milhões de uigures contra sua vontade nos últimos anos em uma grande rede de campos de concentração, o que o governo chama de “campos de reeducação”. O Human Rights Watch acusa a China de praticar crimes contra a humanidade, e ele não é o único.

Em 2017, o presidente Xi Jinping emitiu uma ordem exigindo que todas as religiões na China devem possuir orientação chinesa. Os cerca de 12 milhões de uigures, em sua maioria muçulmanos, que vivem em Xinjiang, a maior região do país, são constantemente alvo de perseguições e sentenças de prisão. Devido à tentativa de homogeneidade cultural, os líderes religiosos são perseguidos e suas práticas religiosas proibidas. Mesquitas e túmulos são destruídos. É proibido o uso de hijabs e barbas consideradas “anormais”, dar nomes muçulmanos às crianças, etc.

Os que conseguem fugir dos campos de concentração relataram tortura física, mental e sexual. Nas mulheres que excedem a cota de filhos imposta pelo governo, são inseridos dispositivos intrauterinos, também podendo ser esterilizadas à força. Alguns disseram terem sido espancados com cassetetes enquanto amarrados a uma cadeira, interrogados enquanto água era derramada em seus rostos, colocados na solitária por longos períodos, privados de sono e comida, proibidos de falar seu próprio idioma ou praticar sua religião e forçados a cantar canções patrióticas aprovadas pelo Partido.

Assim como o Tibete, a região de Xinjiang é autônoma, mas, na prática, ambas as regiões estão sujeitas a grandes restrições por parte do governo central. A região é uma das maiores produtoras de algodão do mundo, com as exportações sendo, em grande parte, feitas de produção fruto do trabalho forçado. A região também é rica em petróleo e gás natural, com sua posição mais próxima à Ásia Central e a Europa a tornando de grande importância para o regime. Para controlar a região, o Partido viu a necessidade de integrar sua poulação ao meio aprovado de vida chinês. Para os comandantes, deixar livre um diferente sentimento nacionalista é algo perigoso. É necessário moldar a sociedade para que ela se encaixe e se adeque ao homogêneo. Uma pátria homogênea é uma pátria unida. E isso, por manter no poder o Partido, é o mais importante.

Xinjiang agora é coberta por uma rede profunda e generalizada de vigilância, incluindo uma rede de câmeras com inteligência artificial. Aplicativos estão sendo utilizados para monitorar o comportamento das pessoas, como a quantidade de eletricidade que consomem e a frequência com que saem de casa. Indivíduos são perseguidos por escutarem “palestras ilegais” ou mesmo por não usarem seus telefones o suficiente, atitude considerada sinal de que o usuário está tentando evitar a vigilância digital imposta.

Um tipo de spyware para Android, disfarçado de uma biografia escrita pelo líder uigur exilado, Dolkun Isa, foi projetado para atingir a comunidade uigur e o livro utilizado como isca para disseminar a infecção. Suas capacidades eram, dentre outras, tirar fotos pela câmera do dispositivo infectado e capturar sua tela.

No início do século XX, os uigures declararam a independência da região, mas ela acabou por ser colocada sob o controle do governo comunista da China em 1949. Os uigures são considerados etnicamente turcos e pressionam para que Xinjiang se torne um país separado, que chamam de “Turquestão Oriental”. Por terem lutado por sua independência e realizado ataques às instalações governamentais, os uigures estão sendo “reeducados” para se integrar à nação chinesa. Para isso, sua cultura deve ser eliminada e seus valores substituídos pelos aprovados pelo Partido. Como resultado das campanhas de eliminação cultural, o crescimento da população em Xinjiang diminuiu drasticamente nos últimos anos, com as taxas de crescimento reduzindo 84% nas duas maiores prefeituras.

O governo chinês se defende das acusações, declarando que são “mentiras fabricadas pelo ocidente” e que sua atuação militar na região é fundamental no combate ao “extremismo islâmico terrorista”.

Problemas à vista

O crescimento chinês foi estupendo, mas nem tudo são flores. Um crescimento contínuo nessa magnitude é algo insustentável, ainda mais por também ter sido financiado com dinheiro fácil para a tomada de grandes empréstimos. Com o recente freio implementado pelo governo central com o objetivo de reduzir a quantidade de endividamento no país, grandes empresas, como a Evergrande, agora se encontram impossibilitados de honrar os compromissos com seus credores. O dinheiro fácil torna seus tomadores mal-acostumados à economia real. A dívida total chinesa já é igual ao triplo de seu PIB, e crescendo rápidamente.

Não melhora a sua situação econômica o fato de haver uma escassez crescente de jovens, devido à política do filho único, que não apenas cessou o crescimento de sua população, mas impossibilitará a geração de riqueza material suficiente para sustentar uma quantidade cada vez maior de idosos não ativos.

Com as recentes visões imperialistas chinesas, bem como a modificação das bases que a tornaram a fábrica global nas últimas décadas, empresas e capital estão deixando o país, favorecendo seus vizinhos menos desenvolvidos, como Índia, Bangldesh e Viatnã, o que desvaloriza sua moeda e obriga a venda de suas reservas internacionais.

O Partido Comunista não foi o responsável pela transformação da China em potência mundial, mas o será por grandes desperdícios, prejuízos e sofrimento até sua inevitável ruína. A dinâmica de poder do estado é dialética pelo fato de constantemente destruir as bases que o tornaram possível. Sem o Partido, o povo chinês terá uma nova chance de seguir seu caminho e revelar ao mundo do que de fato é capaz. Pelo que já nos mostraram, seu futuro certamente será brilhante caso decidam abraçar os valores da liberdade.

Gabriel Camargo

Autor e tradutor austrolibertário. Escreve para a Gazeta com foco em notícias internacionais. Suas obras podem ser encontradas em https://uiclap.bio/GabrieldCamargo

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