Em um corte do Podcast 3 Irmãos que viralizou nas redes sociais, o policial e influencer Renato Amoedo (conhecido como Renato 38tão) afirmou que a Lei Áurea foi um erro e que permitiu o advento da República. Neste artigo, irei responder cada um dos pontos levantados por Renato Amoedo.
A Lei Áurea foi um erro?
O corte viral em que Renato 38tão abordou sobre a Lei Áurea foi do episódio #637 do Podcast 3 Irmãos. Além de Renato 38tão, o influencer Wilker Leão (famoso por gravar discussões com professores na rede pública) também participou do programa.
No corte em questão, Renato 38tão tentou argumentar que a Lei Áurea foi um erro porque permitiu o advento da República, que se mostrou pior que o Império Brasileiro até então vigente. Segundo Renato, “não” havia a necessidade da Lei Áurea, já que devido a algumas leis abolicionistas anteriores, como a Lei dos Sexagenários e a Lei do Ventre Livre, em poucas décadas a escravidão teria acabado (Renato argumenta que isso aconteceria dentro de quarenta anos).
Renato 38tão também tentou argumentar que a abolição imediata da escravidão gerou uma insegurança jurídica e que isso levou os senhores de escravos a apoiar a República em retaliação ao Império, já que este não era mais confiável para eles. Ele ainda tenta (de maneira infeliz) utilizar o confisco de terras para fazer um paralelo com a abolição da escravidão, já que, segundo ele, isso geraria um receio de que o indivíduo pudesse ter sua propriedade confiscada a qualquer momento.
Abaixo, o corte exato onde Renato 38tão faz suas declarações polêmicas:
Críticos e defensores
Como não poderia ser diferente, devido a tudo o que foi dito pelo Renato 38tão, o vídeo gerou uma verdadeira repercussão negativa sobre suas falas (e com razão). Com muitos internautas até mesmo o acusando de “defender” a escravidão. Por mais que não tenha sido isso que ele disse, na prática, foi o que aconteceu.
As críticas a princípio partiram dos próprios libertários, inclusive de influencers relativamente famosos do meio, como Alexandre Porto e Fhoer, que fizeram críticas pertinentes às declarações de Renato 38tão. Abaixo, os vídeos de ambos os influencers:
Vídeo do Fhoer:
Vídeo do Alexandre Porto:
Alguns seguidores do Renato 38tão foram até mesmo além do que ele disse e fizeram declarações disparatadas como “para a época a escravidão não era imoral” e que “há uma distinção entre o moral e o legal”.
Em resposta a essas declarações, posso dizer que o que é moral e imoral é independente da época e lugar. Escravizar alguém sempre foi e sempre será errado. As pessoas de uma determinada época não estarem cientes disso não anulam esse fato. Sem falar que os abolicionistas da época já entendiam que a escravidão era moralmente errada e por isso lutavam contra ela.
Sobre legalidade e moralidade, de fato nem sempre são os mesmos. Leis imorais existem e tendem a entrar em conflito com a moralidade. E é por isso que devemos lutar contra leis injustas. É a moralidade que deve ter primazia sobre a lei. Não o contrário.
Os erros de Renato 38tão sobre a Lei Áurea
Por mais que Renato 38tão não tenha defendido a escravidão, ele se mostrou disposto a aceitá-la caso isso impedisse o advento da República. De fato, o regime republicano (principalmente o democrático) tende a ser mais destrutivo política e economicamente que a monarquia, algo muito bem mostrado pelo filósofo e economista libertário Hans-Hermann Hoppe.
Não irei expor aqui os argumentos em defesa de tal posicionamento. Você pode lê-los aqui e aqui. De toda forma, uma sociedade libertária, ou seja, baseada na propriedade privada, é ética e economicamente superior a qualquer arranjo estatal, seja monarquia ou democracia. O que irei abordar aqui serão as declarações de Renato 38 sobre a Lei Áurea, o Império e a República.
Em primeiro lugar, é indefensável a ideia de permitir que a escravidão durasse mais algumas décadas apenas para impedir o advento da República. É inaceitável que indivíduos continuem tendo seus direitos violados apenas porque supostamente um arranjo pior surja caso a abolição de tais violações seja imediata.
Como bem deixado claro por Murray Rothbard, a abolição de qualquer governo coercitivo de um indivíduo sobre outro (seja o estado ou a escravidão privada) deve ser imediata. E isso independente das supostas consequências “negativas” de tal abolição. Nosso norte em nossas ações deve ser a ética, a moralidade, a justiça, e não o receio de supostas consequências negativas.
Ao contrário do que Renato 38tão falou, ao invés do governo indenizar os senhores de escravos, os senhores de escravos é que deveriam indenizar os ex-escravos. Estes últimos é que tiveram seus direitos violados por anos. Eles têm direito à compensação.
E sobre a “insegurança jurídica”, eu não chamaria manutenção da injustiça de “segurança jurídica”. Não há nada de bom em simplesmente manter leis injustas. Manter leis injustas por uma suposta previsibilidade e estabilidade legal é puro comodismo e ser cúmplice de um sistema injusto.
A segurança jurídica não é boa por si só. Ela serve a uma finalidade: garantir que os proprietários legítimos tenham a certeza de que aquilo que de fato lhes pertence não será retirado deles à força. E neste caso, a segurança jurídica deveria visar a garantia de que os escravos terão sua liberdade respeitada e que os frutos do seu trabalho que lhe foram roubados via escravidão lhe serão devolvidos.
Não faz sentido falar em segurança jurídica para os agressores. Os agressores não devem esperar proteção da justiça, mas punição por suas ações. O problema da Lei Áurea não foi que ela causou uma “insegurança jurídica” contra os senhores de escravos, mas que não houve um sistema jurídico que se preocupou em garantir segurança jurídica de fato aos injustiçados, neste caso, os ex-escravos.
O estado não se preocupou em garantir que os senhores de escravos tivessem suas terras confiscadas e dada aos ex-escravos aquilo que lhes era de direito e que qualquer injustiça contra eles ficasse sem reparação. E digo mais: a República não somente não fez isso assim que surgiu, como protegeu os ex-senhores de escravos e não os puniu pelos seus crimes.
E para um libertário, isso não deveria ser nenhuma surpresa: o estado não se preocupa com o bem-estar e direito dos indivíduos. Os políticos e burocratas que compõem o estado se preocupam apenas em se beneficiar o máximo possível às custas dos indivíduos produtivos.
Somente em uma sociedade libertária onde não há monopólio do estado sobre os tribunais, onde tais tribunais se submeteriam a uma justiça baseada na ética libertária, é que a abolição da escravidão teria sido feita de uma forma justa, onde além de serem libertos, os escravos também deveriam receber as terras onde trabalharam como escravos como suas de direito.
A Lei Áurea não foi responsável pelo advento da República
O que Renato 38tão chamou de “segurança jurídica”, na verdade, foi garantia da impunidade. E foi isso o que a República deu aos ex-senhores de escravos. O que Renato 38, pelo visto, queria é que tal garantia de impunidade fosse sob o Império ao invés da República. Isso tudo porque a escravidão já acabaria dentro de 40 anos e, supostamente, evitaria o advento da República. Tudo isso para evitar supostas consequências negativas.
Digo supostas, porque acredito que tais consequências negativas que ocorreram após a Lei Áurea não foram devido à Lei Áurea em si. E aqui vemos outro erro de Renato 38tão, de não saber distinguir entre causalidade e correlação. O advento da República, junto de suas consequências nefastas, realmente se seguiram logo após a Lei Áurea, mas daí para afirmar que a Lei Áurea sozinha foi responsável por tudo isso é um pulo gigantesco.
O advento da República se deve muito mais a uma dominação crescente do positivismo e do republicanismo no Exército brasileiro. A indignação dos senhores de escravos que passaram a apoiar o republicanismo contra o Império apenas serviu como oportunidade para antecipar um golpe republicano que já estava em andamento.
Porque é importante abordar isso
Renato 38tão de fato não se diz libertário, mas muitos dos seus seguidores se dizem libertários, e muitos deles estão relativizando a ética libertária para tentar justificar suas falas. Então, os esclarecimentos que estão sendo feitos aqui se fazem necessários para ajudar tal público a evitar tais erros.
Ao mesmo tempo, a falsa associação de Renato 38tão com o libertarianismo pode levar pessoas que não conhecem a ideia a fazerem um julgamento prévio equivocado. Sem falar que a associação errônea do libertarianismo com uma figura com posicionamentos equivocados serve de munição para críticos do libertarianismo, principalmente aqueles vindos da esquerda.
Aqueles que evitam tornar o Renato 38tão uma referência do libertarianismo sobre suas vidas estarão fazendo um favor a si mesmos também.
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