Uma análise do artigo do UOL sobre “Anarquismo”

Em um artigo publicado neste domingo no site UOL pelo colunista Emersom Karma Konchog, foi apresentado o anarquismo como uma alternativa ao status quo político. O artigo possui vários pontos positivos, como reconhecer que o modelo político vigente é inimigo da liberdade e que deve ser abolido, bem como um reconhecimento na capacidade humana de viver sem esse sistema.

No entanto, também há pontos negativos a serem considerados, como equívocos sobre o capitalismo e o anarcocapitalismo. Tendo-se em mente que o autor parte de uma perspectiva esquerdista do anarquismo, é compreensível que ele tenha tal percepção.

O autor começa o texto lamentando “crise na imaginação” e uma “pobreza no modo como pensamos coletivamente que tipo de sociedade queremos”. Ele aponta como primeiro exemplo, a “economia verde”, que ele vê como uma solução superficial para um problema que ele considera mais “grave”.

Para ele, não basta as empresas poluírem menos o meio ambiente. Ele vê o capitalismo em si como o problema. Segundo ele:

Um dos problemas aí é que a extração em massa dos minerais dos painéis solares e baterias, por exemplo, já prenuncia outro desastre socioambiental, como sumariza
esta palestra do TED.

Claro que essas medidas pontualmente ajudariam. No entanto, um cancro segue imune: a máquina de exploração e enriquecimento continua sendo a mesma, ganhando apenas um novo visual, pintado de verde.

Ele chega a citar o jornalista Chris Hedges sobre o assunto, que diz:

“As próprias coisas que fazem as sociedades prosperarem no curto prazo — especialmente novas maneiras de explorar o ambiente como a invenção da irrigação ou o uso de combustíveis fósseis — levam ao desastre no longo prazo. Isso é o que Wright chama de ‘armadilha do progresso’.”

Como bem exposto por Edwin Dolan, as experiências do socialismo real foram muito mais desastrosas para o meio ambiente que o capitalismo. E como Rothbard bem demonstra, é a ausência de direitos de propriedade sobre determinados recursos que leva a um aproveitamento irresponsável destes. Maioria dos recursos sobre explorados são recursos que não são de ninguém e onde há incentivos para seu uso intensivo antes que outros o façam.

Sobre a afirmação de que o capitalismo beneficia apenas uma minoria, ela é completamente falsa. O capitalismo foi de longe o modo de produção que mais beneficiou os mais pobres. Desde o advento do capitalismo moderno com a Revolução Industrial, houve uma queda drástica na pobreza de uma forma que nunca se viu na história da humanidade, como se pode ver neste excelente artigo do grande economista Juan Ramón Rallo.

O autor em seguida fala sobre qualidades que ele julga importantes para se viver em uma sociedade melhor, como “ajuda mútua, proteção recíproca e compaixão desinteressada; não apenas entre nós humanos, mas com toda a vida”. Algo perfeitamente bem vindo e compatível com uma sociedade baseada no respeito ao direito de propriedade (de seu próprio corpo e meios de ação) e no voluntarismo.


O autor até faz uma afirmação extraordinária e correta sobre a existência do estado e estruturas de poder coercitivas similares, de que “não precisamos de estruturas de poder ultraconcentradas definindo o que desejamos, consumimos e até como pensamos”.

Konchog também faz uma afirmação correta sobre a anarquia, a enxergando como “a ancestral ideia de que não precisamos de hierarquias de poder, mas temos a capacidade de construir algo belo e próspero com base em nossas próprias capacidades e aspirações mais íntimas, de modo harmônico”.

No entanto, mesmo simpatizando com o anarquismo e reconhecendo que estruturas de poder coercitivas são dispensáveis e até condenáveis, ele paradoxalmente também flerta com organizações que fazem parte de tais estruturas, como a ONU. Ele chega a até mesmo apontar a orientação da ONU de decrescimento econômico como uma “alternativa à narrativa do crescimento verde”.

Aqui, ele apresenta a proposta também apresentada por Klaus Schwab, presidente do Fórum Econômico Mundial, de que “o modelo de crescimento econômico infinito é essencialmente destrutivo, mas que seu oposto deve ser buscado como uma forma de mitigação e regeneração socioambiental”. Se a própria ONU já fala sobre decrescimento, por que não ir mais fundo?”.

Como já dito, por mais que haja boas intenções por trás de tal posicionamento por parte de muitos (e sou cético de que haja boas intenções por trás de Klaus Schwab e similares sobre isso), a realidade da economia bate nossa porta, e nos mostra que tal postura é inviável e irrealista, ainda mais com o tamanho da população que temos hoje. Como Rothbard mostrou em seu ensaio ‘Liberdade, Desigualdade, Primitivismo e Divisão do Trabalho‘, existe uma romantização infantil do modo de produção primitivo, ignorando a condições em que os primeiros seres humanos realmente viveram e o número de seres humanos que haviam em tais condições.

Além de uma expectativa de vida mais baixa e uma população menor (devido à, por um lado, fatores naturais como doenças, e por outro, aborto e infanticídio), os primeiros seres humanos não usufruiam das comodidades que a maioria dos humanos atuais não estaria disposta a abrir mão.

Um outro ponto importante apresentado por Konchog é de como o desenvolvimento da internet deve muito ao ideal anarquista de descentralização e autonomia. No entanto, ele lamenta que a internet esteja “descambando para a mais vil distopia tecnológica”. Resta saber em qual sentido ele se refere. Sendo um esquerdista, que, apesar de simpatizante com o anarquismo, também é um admirador do politicamente correto imposto pela ONU e organizações similares, é de se suspeitar que ele não esteja se referindo ao controle que as Fintechs apoiadas pelos estados democráticos modernos possuem sobre os indivíduos, mas sim, sobre os segmentos que não aceitam tal imposição.

Konchog também se mostra animado com o quanto o anarquismo está sendo melhor conhecido graças a obras inspiradas na ideia, como “Os Despossuídos”, de Ursula Le Guin, chegando a fazer a brilhante afirmação de que o anarquismo é um “impulso humano fundamental de liberdade e prosperidade última ainda tem sido muito suprimido”.

No entanto, ele lamenta sobre certas obras que para ele, “ofuscam” o “verdadeiro” ideal anarquista, citando como exemplo a série ‘The Anarchists’. Segundo ele, a série deveria se chamar “Anarcocapitalistas”, dado o posicionamento ideológico dos personagens. Ele como bom esquerdista, rejeita o anarcocapitalismo pela sua defesa de “liberdade absoluta, sem impostos, sem regulação do governo ou de preocupações socioambientais”.

E ele vai além, e como muitos que tem um entendimento superficial e equivocado sobre o anarcocapitalismo, o aponta como “anarquismo para os milionários, austeridades socialistas para o restante”. Nada mais longe da verdade, como já explicado no artigo em resposta ao João Gordo sobre o anarcocapitalismo ser “ideologia para bilionários”.

O anarcocapitalismo é um modelo social que traz benefícios para todos, independente da classe social, gênero ou o que seja. Dado o fato de que anarcocapitalistas reconhecem que o capitalismo é um modo de produção que melhor traz prosperidade para a sociedade, eles o abraçam, diferente dos anarquistas de esquerda da primeira onda no século XIX, que devido à sua incompreensão de tal modo de produção os levou a abraçar equivocadamente o socialismo. Isso foi muito bem explicado por vários autores libertários brasileiros em um artigo em resposta à Folha de São Paulo sobre o anarcocapitalismo.

Konchog também mostra preocupação com a “nova ascensão protofascista mundial” que vê como reação à descentralização do poder, afirmando que “Quando o pêndulo avança de um lado, o outro também começa a aparecer”. Eu diria que real motivação da ascensão do protofascismo é justamente o oposto disso.

O fascismo quando surgiu no início do século XX, surgiu como reação a expansão da tirania soviética, onde várias pessoas se iludiram achando que ele era uma barreira genuína de defesa contra o avanço do socialismo. Algo que Mises aponta muito bem em sua obra ‘Liberalismo Segundo A Tradição Clássica‘:

A ideia fundamental desses movimentos (os quais, com base no nome do mais grandioso e ferrenhamente disciplinado deles, o italia-no, podem ser designados, em geral, como fascistas) consiste na proposta de fazer uso dos mesmos métodos inescrupulosos na luta contra a Terceira Internacional, exatamente como esta faz contra seus oponentes. A Terceira Internacional visa a exterminar seus adversários e suas ideias, do mesmo modo que o sanitarista luta para exterminar um bacilo pestilento. Não se considera, de modo algum, obrigada aos termos de qualquer pacto que venha a celebrar com seus oponentes e considera permissível todo crime, toda mentira e toda calúnia, na execução de seus planos. Os fascistas, pelo menos em princípio, professam as mesmas intenções.

Da mesma forma, os movimentos reacionários similares ao fascismo que crescem hoje (seja na forma da alt right nos EUA, seja na forma da ‘Nova Direita,’ na Europa), parecem muito mais reações à ditadura do “bem” dos governos democráticos atuais do que a qualquer descentralização, que na verdade é suprimida pelo regime ‘democrático’.

Não que essas reações sejam de todo legítimas, mas são um sinal de que muitas pessoas não estão mais dispostas a tolerar a tirania das democracias modernas disfarçadas de “interesses pelo bem comum”. Pautas que cerceiam as liberdades dos indivíduos, como pautas ambientalistas, politicamente corretas, multiculturalismo, etc., aplicadas de forma coercitiva sobre os indivíduos, são cada vez mais reconhecidas mais como formas de controle social por parte de burocratas megalomaníacos do que libertadoras de fato.

Se tais ideologias similares ao fascismo ganham espaço, é porque conseguem vender a ideia de que são uma saída para todo isso. No entanto, elas também partilham dos mesmos erros que as democracias modernas, como imposição de normas de comportamento sobre indivíduos, chegando até mesmo a defender políticas econômicas tão destrutivas quanto o socialismo e a social democracia, como o protecionismo.

Logo, é importante que os verdadeiros opositores da tirania em geral levem as ideias de liberdade e justiça adiante, e os anarcocapitalistas levantam essa bandeira com orgulho e convicção. O autor inclusive acerta em cheio sobre a verdadeira solução contra a tirania, apontando o anarquismo como “a capacidade de resolver situações difíceis por nós mesmos, sem nenhuma intervenção autoritária, no fundo compartilha o princípio básico anarquista, o de auto-organização espontânea”.

Konchog também afirma corretamente em consonância com Alan Moore (autor de ‘V de Vingança’) que “o contrário do fascismo não é o socialismo, mas sim o anarquismo”. Eu diria mais: o anarquismo, corretamente compreendido, é oposto a qualquer poder coercitivo, o que inclui o fascismo, democracia, socialismo de estado e similares.

Citando o autor anarcomutualista David Graeber, Konchog traz o importante insigth por meio da pergunta “— Se há uma fila para pegar um ônibus lotado, você espera sua vez e se contém para não furar a fila mesmo na ausência da polícia?”. Nisso, ele brilhantemente dá a resposta acima, de que “quem acredita que temos a capacidade de resolver situações difíceis por nós mesmos, sem nenhuma intervenção autoritária, no fundo compartilha o princípio básico anarquista, o de auto-organização espontânea.”

Ele ainda reconhece que democracia representativa atual é um sistema de manipulação. As intenções declaradas de qualquer político ou partido, no final, acabam comprometidas, nem que sejam por forças além de seu controle, devido à própria maneira como esse sistema é projetado. No entanto, ainda está preso à esperança de que a participação na “festa da democracia” seja algo efetivo e afirma que “não vou anular meu voto nas eleições que se aproximam. Em situações extremamente críticas como a atual, ainda vale a utilidade do ‘menos pior'”.

Resumindo tudo que foi analisado em seu artigo sobre Anarquismo, é perceptível o quanto Konchog ao mesmo tempo que está tomado por insigths brilhantes sobre o quanto o sistema democrático é um sistema corrupto de poder, também peque ao mesmo tempo, não só na inocente esperança de fazer alguma mudança participando do sistema que ele mesmo reconhece como corrompido devido a sua própria natureza, mas também por vários equívocos econômicos, principalmente em relação ao capitalismo. No mais, Konchog está mais próximo de enxergar a verdade do que aqueles que se iludem defendendo a democracia como melhor arranjo social possível.

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