Aborto EP03: "Meu corpo, minhas regras" | Por Nicholas Ferreira

   Ao meu ver, este é, sem dúvidas, o argumento mais utilizado a favor do aborto – ou a favor do direito de abortar. É dito que a mulher é dona do seu próprio corpo e tem direito cuidar dele da maneira que bem entender, o que inclui o direito de poder interromper a própria gravidez.
O primeiro raciocínio está perfeitamente correto. De fato, todos os indivíduos são donos dos seus próprios corpos, esta é a norma de autopropriedade e é dela que derivam os direitos de propriedade sobre outros recursos que não o corpo. Isso significa que cada indivíduo tem o direito de controle exclusivo do próprio corpo. Isso também significa que cada indivíduo tem o direito de não ter seu corpo usado como meio pela ação de qualquer outro indivíduo sem seu consentimento prévio. Em outras palavras, você, como indivíduo, tem o direito de não ser agredido por outro indivíduo, pois, se isso for feito, então isso significa que sua autopropriedade não foi respeitada. Esta é a base de toda a teoria libertária – o reconhecimento da propriedade privada dos indivíduos. Pode soar estranho dizer que o seu corpo é uma propriedade (trata-se de um recurso material, um bem escasso[18]), mas ele é, e você é o único proprietário possível. Não vou entrar em detalhes agora acerca do reconhecimento desse direito, mas a primeira parte do argumento – a que diz que a mãe tem autonomia sobre seu próprio corpo – está completamente correta.
De fato, a premissa “meu corpo, minhas regras” está corretíssima. O problema é a conclusão derivada dessa premissa. Dizer que a mãe tem autonomia sobre seu próprio corpo e, a partir disso, afirmar que ela deve ter o direito de realizar o aborto é um salto lógico, trata-se de um non sequitur[19]. Não é possível estabelecer qualquer vínculo entre a conclusão e a premissa, neste caso. O fato de a mãe ser dona do próprio corpo e ter autonomia sobre ele nada tem a dizer sobre a proposição de que ela deve ter o direito de praticar o aborto.
O grande erro nesse argumento é considerar o feto (ou o embrião, ou zigoto) como uma unidade componente do corpo da mãe. Esta é uma questão que não pode ser obtida puramente a priori (pelo menos até onde eu sei), então requer o uso da experimentação. Como eu disse anteriormente, o método científico não deve ser usado como meio para se chegar a conclusões acerca da validade ética de determinadas ações; porém, ele pode ser usado para mostrar que uma proposição está errada. Por exemplo, pode-se usar o método científico para se contrapor à frase “a aceleração gravitacional na Terra é de 3 m/s”. Essa proposição, em específico, pode ser refutada tanto através de experimentos, mostrando que a real aceleração gravitacional na Terra é de cerca de 9,8m/s², quanto através do apriorismo, apenas mostrando que aceleração é medida em metros por segundo ao quadrado (m/s²), e não metros por segundo (m/s), e que, portanto, essa proposição não pode estar certa. Essa proposição teria o mesmo valor que dizer que o peso de uma pedra é 37°C.
A embriologia

   Retornando, a mãe tem sim autonomia sobre seu corpo, porém, o feto não é seu corpo. Não é possível se chegar à conclusão de que a mãe deve ter o direito de realizar o aborto apenas a partir da premissa que ela é dona do corpo dela. Para que isso seja possível, será necessário que se prove que o feto (ou embrião, ou zigoto) é um componente do corpo dela e isso não pode ser feito.
É possível constatar, através de estudos em embriologia, que o feto (ou embrião, ou zigoto) não faz parte do corpo da mãe, apesar de estar dentro ele. Após a fecundação do ovócito II (gameta feminino, célula haploide [contém metade do código genético]) da mãe pelo espermatozoide (gameta masculino, equivalente ao ovócito) do pai, há a fusão dos pronúcleos (os núcleos de cada célula haploide), formando o núcleo do zigoto (célula diploide, com a totalidade do código genético), contendo a nova informação genética, que é composta pela combinação das informações separadas em cada gameta[20]. Está formado o zigoto, um novo indivíduo biológico, um novo ser humano.[21] [22] [23] [24]
Não está em questão se o zigoto é um indivíduo dotado de direitos ou não, se ele se desenvolverá ou não. O fato em questão é o de que o zigoto é um indivíduo biológico à parte, uma outra vida, nova. A informação genética armazenada em seu núcleo é única, nunca existente antes em nenhum outro lugar do mundo. Também não está em questão se ocorrerá a nidação, processo no zigoto se anexa ao endométrio, que é o evento segundo o qual a medicina passa a considerar a gestação. Mesmo que não ocorra a nidação e que o zigoto seja perdido, houve a formação de um novo indivíduo biológico, um novo organismo. Isso não pode, porém, ser considerado aborto, pois não foi uma interrupção consentida da gravidez. A mulher não agiu para que isso ocorresse, foi apenas uma falha natural de um processo biológico.
Isto posto, surge um questionamento: se a mãe pode realizar o aborto porque ela é dona do próprio corpo e, consequentemente, do feto – segundo o argumento –, então a partir de quando esse “direito” pode deixar de ser considerado? Se tal argumento for considerado válido, ignorando demais fatores, então não há diferença na realização do aborto no primeiro dia de gestação, ou no terceiro, ou na segunda semana ou no oitavo mês. Afinal, em todos esses períodos o feto está no útero da mãe, sua propriedade. Supondo que alguma alma perversa concorde que se pode realizar o aborto até o nono mês de gestação, o que impede, então, que a criança recémnascida seja morta? O que diferencia uma bebê de nove meses no ventre da mãe do mesmo bebê de nove meses fora do ventre da mãe, minutos depois? Analogamente, se eu sou dono da minha casa, isso me dá o direito de violar a propriedade de quem está dentro dela? Possíveis respostas para esta objeção seriam “o feto é um invasor”, ou “a mãe não consentiu com a entrada dele”, e estas serão respondidas mais para frente[25].
Em síntese, afirmar que a mãe é dona do próprio corpo e, portanto, tem o direito de abortar o feto não faz sentido, é um salto lógico, pois a conclusão não deriva da premissa. Ignorando isso, é como se eu dissesse que sou dono da minha casa e posso matar quem estiver dentro dela. A mãe é sim dona do próprio corpo e ela teria de abortar o feto caso este fizesse parte do corpo, mas não faz, assim como um visitante não faz parte da minha casa. O feto é um ser à parte, um novo indivíduo biológico, com DNA completamente diferente de qualquer outro que já pisou na Terra, caracterizando-o como um novo ser vivo. Se ser dona do próprio corpo dá o direito de realizar o aborto, então dever-se-ia ser considerado válido abortar até o nono mês de gestação, uma vez que o feto continua “fazendo parte do corpo” da mãe até o momento do parto. Caso este argumento fosse rejeitado por quem defende o ponto de que a mulher é dona do próprio corpo e tem o direito de abortar – o que mostraria por si só que ele é inconsistente – e o defensor ainda persistisse que a mãe tem o direito de abortar, então teria que ser demonstrado a partir de que momento o feto deixa de ser uma entidade sem direitos e passa a ser um indivíduo dotado de direitos. A definição deste momento usando critérios científicos é, porém, arbitrária, como explicado anteriormente, pois implica em questões normativas. Dessa forma, o argumento defendido não pode ser válido.


18 Escasso não no sentido de existir em pouca quantidade, mas no sentido de ser único. Por exemplo, o oxigênio é um recurso escasso. É óbvio que ele não existe em poucas quantidades: ele compõe parte dos gases que nós respiramos, forma a água, além de participar de inúmeras moléculas que formam nossos corpos e vários outros compostos ao nosso redor. Entretanto, cada átomo de oxigênio é único, e todos os átomos existem em quantidades limitadas. Ainda que um dado recurso existisse em quantidades ilimitadas, cada um dele ainda continuaria sendo único, como se tivesse um token, um fator de identificação único que o diferencia dos demais infinitos recursos. 
19 O non sequitur é uma falácia lógica na qual a conclusão do argumento não segue da premissa. Por eeplo: Eu sou o adidato alto, potato, seei o esolhido, ou Fua igao é pejudiial, portanto, não se dee fua igao.. O segudo eeplo é u aso aida ais espeífio dessa falia, deoiado Guilhotia de Hue. Tata-se de um non sequitur no qual a conclusão do argumento tem caráter normativo universal e suas premissas tem caráter descritivo. Em outras palavras, isso ocorre quando uma norma universal (uma prescrição de ação que deve ser seguida por todos) é derivada unicamente de um fato (um ser). Será melhor comentado mais adiante.

20 GILBERT., Scott F. (2014). Developmental Biology. [S.l.]: Swathmore College and the University of Helsinki 
21 Keith L. Moore, The developing human: Clinically Oriented Embryology, 7 ª edição. (Filadélfia, PA: Saunders de 2003), pp 16, 2. 
22 Keith L. Moore, Before we are born: Essentials of embryology and birth deffects, 7 ª edição. (Filadélfia, PA: Saunders de 2008), p. 2. 
23 Roa O’Rahill e Faiola Mülle, Human Embryology & Teratology, 3 ª edição. (New York: WileyLiss, 2001), p. 8. 
24 Geraldine Lux Flanagan, Beginning Life. (New York: DK, 1996), p. 13.
25 Ver ep. 9 adiante.

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