Juízos de valores
Toda vontade é uma forma de preferência. Assim, desejar um gole de água e querer ir ao banheiro podem ser decompostos em “preferir tomar um gole d’água do que não tomar um gole d’água” e “preferir ir ao banheiro do que não ir ao banheiro”, respectivamente. Essas vontades são individuais e subjetivas, cada agente julga, de acordo com seu conhecimento anterior, a forma com que se encontram os estados das coisas, chegando assim à conclusão sobre querer ou não tais estados.
Podemos chamar essas aspirações de juízos de valores. Uma característica interessante sobre esses juízos é que eles não podem ser comparados entre si, justamente porque refletem apenas a subjetividade do agente que o emitiu.
Seria inútil tentar provar um querer, como tentar objetar o juízo de querer fazer X com outro juízo de querer fazer Y. Da mesma forma que não podem ser comparados uns com os outros, os juízos, de fato, não podem ser comparados com nada. São apenas emissões vazias de um valor verdade, são portanto, no sentido mais comum do termo, meras opiniões.
Isso não deve ser confundido com as proposições existenciais sobre esses juízos. Estamos tratando do juízo como tal, não da presença ou ausência dele. Quando dizemos “eu quero tomar água”, é uma proposição que não pode ser debatida, não nos referimos sobre a existência ou não desse juízo, mas sim do juízo em si. São desses juízos de valores que nós tiramos, na estrutura da ação, os fins. Eles são os objetivos futuros do agente, representando um estado futuro melhor do que se espera que aconteça. Sempre são direcionados ao futuro e dependem da especulação sobre ele.
Valorização e utilidade
Com sua finalidade em mente, o agente ordena e classifica as diferentes formas de alcaçar tais fins. A classificação entre diferentes fins cabe apenas ao agente que, por meio de sua própria escala valorativa, ordena seus diferentes objetivos. A classificação desses objetivos é um juízo de valor.
Chamaremos todas as diferentes formas de se atingir os fins conhecidos pelo agente de meios. Esses meios são ordenados de acordo com suas potenciais formas de atingir um fim especifico. Podemos chamar essa ordenação de utilidade.
A mistura do conhecimento pessoal de fins e meios é chamado de conhecimento prático. Dentre as várias características que esse conhecimento possui, as principais são: ele é pessoal; é intransmissível ou não articulável (pelo menos de forma intencional); é subjetivo e mutável com o passar do tempo.
Umas das peculiaridades essenciais sobre esse tipo de conhecimento é que ele não pode ser conhecido por terceiros, dada sua natureza inarticulável e não passível de qualquer formalização. Nem mesmo pela análise de uma ação é possível saber os objetivos que o agente tinha, nem todas as mudanças que ele conscientemente procurou ocasionar. O que faz alguém sentir-se menos desconfortável é estabelecido a partir desses critérios decorrentes de sua própria vontade e julgamento, de sua avaliação pessoal e subjetiva. Ninguém possui as faculdades para determinar o que faria outrem mais feliz, por exemplo.
Esse estoque de fins e meios é alimentado a cada momento pela percepção de oportunidades do agente, onde ele, através de um estado de alerta, descobre novas formas de se chegar a um objetivo ou reanalisa seus juízos de valores, determinando se cabe ou não uma mudança. De acordo com a terminologia do economista americano Israel Kirzner, essa capacidade perceptiva é chamada de função empresarial. Essa percepção muda subjetivamente e de acordo com as experiências passadas, portanto, sua natureza é individual e intransmissível.
Assim que acredita ter descoberto quais os fins que valem a pena e quais os que se encontram ao seu alcance, o agente integra-os, quase sempre de forma tácita, em um plano de atuação, que empreende e põe em prática como consequência de um ato pessoal de vontade.
Por último, temos o tempo. Para cada instante do tempo que se passa, a incerteza subjetiva aumenta devido ao aumento de fatores para análise, fazendo com que o tempo passe a ser desútil, isto é, representando uma insatisfação para o agente. Então, o tempo é contabilizado em cada meio por sua capacidade de atingir o objetivo o mais cedo possível. Isso faz com que os bens presentes se tornem preferíveis aos bens futuros que, similarmente, pode ser escrito como: o adiamento de uma recompensa no presente requer uma recompensa maior no futuro. Essa categoria lógica da ação humana é conhecida como lei da preferência intertemporal, sendo a discrepância entre o valor desses bens nos diferentes períodos do tempo a taxa de juros originária. Esses juros originários também acabam por afetar a estrutura de preços, como será visto adiante.
As várias formas de atingir esses objetivos são impossíveis de serem feitas simultaneamente. Planear dormir e — ao mesmo tempo — ler um bom livro são duas aspirações excludentes. Portanto, a escolha de um objetivo a seguir implica em renúncias de outros. A decisão de dormir implica na abdicação da leitura de um livro. Esses são os custos de fins, onde um objetivo implica em renunciar outro. Já os custos que remetem a preferência por determinado ramo de ação do que outro são denominados custos de meios, sendo esses meios os bens econômicos. Optar por comprar um suco de uva de R$5,00 implica em renunciar todos os outros fins que seriam possíveis de serem realizados com essa quantia monetária. Depois de todas as valorizações de formas diferentes de se conseguir objetivos, temos assim, a ação, que é a própria execução dos planos pensados anteriormente.
Ação e seus pré-requisitos
A ação humana é uma vontade posta em prática, ou seja, ela é um comportamento propositado. Ludwig von Mises também utiliza outras definições: ação é resposta do ego aos estímulos e condições do meio ambiente; é o ajustamento de forma deliberada ao estado do universo que lhe determina a vida.
Como já vimos, a satisfação é o estado no qual se encontra um ser humano que não resulta e nem pode resultar em uma ação. O agente utiliza de meios para alcançar fins, para que ele substitua uma situação de desconforto por outra menos desconfortante. A partir disso, é possível concluir que a insatisfação é um requisito para que uma ação aconteça.
Não basta a insatisfação e a imagem de uma situação melhor para o homem agir, também é necessário que a expectativa de que a vontade posta em prática tenha o poder de acabar ou diminuir o desconforto. Sem essa terceira condição, nenhuma ação é possível.
O homem possui condições para agir porque tem capacidade de conceber causas que determinem mudanças no espaço onde vive, portanto, ação requer e também pressupõe a causalidade. As categorias da ação humana meios e fins pressupõem as categorias causa e efeito. Devemos deixar claro que os problemas epistemológicos e metafísicos da causalidade e da indução perfeita estão fora do escopo das ciências da ação humana.
O objeto de estudo da praxeologia é a ação humana, ela lida com o homem e não com o homem transformado em uma planta, reduzido em uma existência vegetativa. A criança recém-nascida também não é um ser agente, uma vez que ainda não desenvolveu plenamente suas capacidades.
Instintos, racionalidade, irracionalidade e objetivo maior
O termo “ação racional” é pleonástico e deve ser rejeitado, uma vez que a ação humana é necessariamente dotada de racionalidade. Como ninguém tem condições de substituir julgamentos de valor de um indivíduo pelo seu próprio julgamento, é inútil julgar objetivos e vontades de terceiros.
A resposta automática aos estímulos por parte dos órgãos e instintos de organismos que não podem ser controlados pela vontade do agente é o impulso de preservar a própria vida, é uma característica primordial dos seres vivos, entretanto, o homem é um ser dotado da capacidade de subjugar seus instintos, sejam estes sua própria vontade de viver. A resposta automática aos estímulos por parte dos órgãos e instintos de organismos que não podem ser controlados pela vontade do agente é o oposto de ação, não sendo, como tido pelo mainstream nas ciências naturais, o que chamam de “comportamento irracional”. Se um homem cai e se machuca, os órgãos reagem organizando a sua defesa, porém, há a possibilidade da interferência da sua ação pela administração de um remédio.
Existem comportamentos que não podem ser interpretados pelos métodos das ciências naturais, tampouco pela praxeologia. Essas formas de agir são chamadas de quase ação; são os instintos úteis. A quase ação é passível de duas observações: primeira, a tendência inerente a um organismo vivo de responder um impulso de acordo com o mesmo padrão; segunda, os efeitos benéficos deste tipo de comportamento para a preservação da saúde deste organismo. Como não foi possível encontrar nenhum vestígio de uma mente por trás desse comportamento, supomos que um instinto o provocou. Por fim, a palavra “instinto” é apenas um marco divisório que indica um ponto além do qual, até o presente momento, somos incapazes de investigar completamente.
Para concluir, a praxeologia (e a história) não possui como objeto de estudo as intenções de uma mente superior e objetiva, nem sobre os planos que Deus está tentando realizar ao articular o universo. Não é a chamada filosofia da história.
Metodologias da praxeologia
Existem fenômenos que não podem ser investigados nem ter sua origem rastreada em outros fenômenos: estes são os dados irredutíveis, dados que fazem com que adotemos determinadas metodologias específicas de análise.
Julgamentos de valor e ações humanas definidas não são passíveis de maiores análises. Podemos supor ou acreditar que sejam inteiramente dependentes de (ou condicionados por) suas causas. Mas, uma vez que não sabemos como fatos exteriores produzem na mente humana pensamentos e vontades definidas que, como vimos, resultam em atos concretos, temos de adotar o dualismo metodológico.
A praxeologia lida com as ações individuais. Só mais tarde é que consegue compreender a cooperação social. É o significado que os agentes individuais, e todos que são afetados pela sua ação, atribuem a uma ação que determina seu caráter. Utilizando o exemplo de Mises: é o carrasco, não o estado, que executa um criminoso. É o significado daqueles interessados na execução que distingue, na ação do carrasco, uma ação do estado. Ao analisar o significado das várias ações executadas pelos indivíduos, necessariamente aprenderemos tudo sobre as ações dos conjuntos ou grupos. Assim, adotaremos o individualismo metodológico.
O ato de escolher é sempre uma decisão entre várias oportunidades submetidas à escolha individual. O homem não escolhe entre uma “boa ação” ou “má ação”, somente entre dois modos de ação que consideramos, do nosso ponto de vista, bom ou ruim. Cada ação possui consequências imediatas, e são limitadas por isso. Conseguinte, as ciências da ação humana utilizam o singularíssimo metodológico, uma vez que a vida humana é uma sequência incessante de ações singulares.
Interações humanas
Quando um agente usa outro como meio para a sua ação, há uma troca praxeológica. Essa troca pode ser dividida entre hegemônica e harmônica. A hegemônica é a troca em que X impõe a Y os padrões dos fins originalmente almejados por X, forçando Y a seguir um ramo de ação diferente de um que o beneficiaria. Já na troca harmônica, há uma relação onde ambos os agentes usam um ao outro como meio, sendo uma ação em conjunto caracterizada pelo ganho mútuo. O sentido da palavra “benefício” utilizado aqui é anterior a ação, ou seja, está presente no plano de atuação em si, não levando em conta os possíveis erros de conhecimento que podem surgir.
É tentador usar a notável diferença entre essas trocas praxeológicas para justificar as relações harmônicas frente as hegemônicas, adotando um argumento de satisfação coletiva. O que essa investigação negligencia é que, paradoxalmente, o impedimento de uma possível relação hegemônica também se caracteriza como uma relação hegemônica. Tomando como exemplo, um justiceiro que impõe fins ao agressor estabelece uma relação hegemônica. Assim, o que causa esse transtorno não é a ação hegemônica como tal, mas o próprio fim hegemônico.
Nas relações hegemônicas, o que é necessário para sua consecução é apenas a força bruta, já as harmônicas pressupõem a existência de uma compatibilidade de fins entre os dois ou mais agentes. Para que um diálogo aconteça, é necessário a colaboração mútua de dois agentes, ou até mesmo um grupo maior, que possuam o fim “conversar” ou tenham em mente a utilização do diálogo como meio para outro fim.
Portanto, para lograr maior interação social dentro de uma comunidade, é necessário a existência de uma harmonia de fins ou interesses dos agentes participantes. Cada sociedade tem esses mesmos fins de formas diferentes, seja por rituais religiosos, festas, tradições e costumes. Esse conjunto de fins é chamado, dentro de uma ótica hayekiana, de moral.
A moral também é manifestada em aspectos econômicos, seja preferência temporal, preferência por alguns bens ou até mesmo a extensão da atividade de mercado. Em um cemitério, por exemplo, o comércio ambulante é proibido. Mesmo que o órgão diretor permitisse, esses ambulantes seriam taxados de oportunistas ou aproveitadores, isto é, a população de forma alguma apoiaria tal prática, uma vez que ela é tida como imoral. Nesse caso, a moral consegue limitar a extensão das atividades mercadológicas.
A partir disso, Hayek delimita uma evolução moral na sociedade, seguindo o conceito das ordens espontâneas, definidas como os resultados da ação humana, porém não deliberadamente planejadas. A cada mudança de finalidade ocorrida por alguma partícula social, o modelo moral da sociedade sofre influência como um todo, criando um efeito cascata dentro do paradigma social.
A função empresarial no meio econômico
O empreendedor é aquele que promove o processo econômico pelo meio empresarial. É aquele que, por meio da função empresarial, consegue descobrir oportunidades no mercado e acaba aplicando-as. O sentido de empresa enquanto ação está necessariamente de acordo com o significado etimológico em “in prehendo”.
No mercado, os indivíduos agem em busca do lucro, sempre tentando aplicar o seu capital disponível de forma a maximizar sua renda, conseguindo assim o benefício social como consequência não intencional.
O lucro no processo mercadológico é um guia para os empresários, pois demonstra, acima de tudo, uma desatualização nos bens de capital. Os bens de capital têm seus preços definidos por sua expectativa do seu produto futuro, com a taxa de juros sendo o fator de desconto. Assim, para obter lucratividade diante ao comércio, é necessário encontrar preços de bens de produção que não estejam atualizados com os preços dos bens de consumo futuros que os mesmos são capazes de produzir.
Através da função empresarial, o empresário percebe um meio que seja subvalorizado para um agente A, troca por outro meio que ele mais valoriza para assim transformar esse meio e trocar com um agente B que os supervalorizam, com a finalidade de retirar desse processo uma discrepância de saldos monetários — admitindo aqui o uso da moeda — intitulada de lucros.
A função empresarial consiste, portanto, em conseguir alocar escalas de fins e meios de forma a atingir uma diferenciação monetária, ou seja, lucros. Como estas escalas estão em mudança contínua, há uma dificuldade inerente para o empreendedor que, além de tudo, depende da especulação sobre o estado futuro dos bens econômicos.
Longe de se estender apenas a isso, a função empresarial é responsável pela transmissão de uma informação que, para um determinado agente A seu meio é valorizado por outros atores, fazendo com que A passe a valorizar seu meio, transmitindo para B a disponibilidade do meio que o este precisa para seus objetivos, podendo desta forma atingi-los.
Consequentemente, os lucros tendem a desaparecer. Porém, essa tendência é contrabalanceada com as seguintes mudanças: mudanças de automação; nas preferências dos consumidores; fatores externos; alterações de oferta; mudança do conhecimento prático.
Todo o processo da função empresarial na sociedade, responsável pelas diversas valorizações de meios e fins, consiste na própria ordem espontânea do mercado, sendo a força motriz causadora da alocação de recursos de forma que mais atenda à demanda dos consumidores e, constituindo-se assim, a complexa junção entre a divisão do conhecimento e a divisão do trabalho.
Função empresarial vs Gerencia burocrática
Para facilitar a árdua função do empresário perante o mercado, ele utiliza de um artifício que, embora possa parecer comum, guarda em si uma característica essencial para o desenvolvimento econômico: a ferramenta contábil.
Através de lucros e prejuízos, o empreendedor consegue analisar seus empreendimentos passados e chegar à conclusão de que foi ou não bem-sucedido. Com isso, adquire conhecimento prático e consegue melhorar a alocação da produção, seja tentando algo novo seja continuando o que foi feito.
A contabilidade acaba por servir como um alocador de capital. Consegue levar os bens de capital e capital humano para aqueles que melhor conseguem empregá-los, suprindo as demandas. Por meio dessa ferramenta, por exemplo, um dono de lojas consegue saber quantas lojas deve abrir e quantas vender, por meio do montante total dos lucros advindos disso. Essa metodologia ainda permite uma subdivisão dos processos produtivos, facultando o empreendedor a possibilidade de analisar detalhadamente cada parte da produção e descobrir qual parte de sua empresa é a fonte de suas perdas.
Existe, contudo, um outro sistema de administração: o sistema burocrático. Esse sistema caracteriza-se por ter suas decisões de alocação baseadas puramente em viés político e pessoal. Consiste em delegacias, bancos estatais, órgãos públicos e todo tipo de gerenciamento que não seja guiado pelo lucro, longe disso, é guiado pela arbitrariedade da opinião pessoal da diretoria deste órgão de controle.
Portanto, fica a inevitável pergunta: quanto, como, onde e o que produzir? Estes questionamentos poderiam ser respondidos em um sistema de lucros e prejuízos, basta usar esses indicadores para conseguir ter uma noção de produção. Claro que esse sistema não é perfeito — infelizmente, somos desprovidos de uma alocação perfeita de bens e serviços —, ainda cabe da interpretação do empreendedor essas condições, porém, é de grande ajuda.
Já no sistema burocrático, o gerente é completamente cego para essas múltiplas possibilidades, não há guia nenhum, não há como obter, das informações passadas pela divisão do conhecimento, um guia ou projeto para suas ações. Desta forma, o órgão diretor é ineficiente, não conseguindo suprir a demanda no mercado, sendo apenas um custo para o processo produtivo.
Esse custo é estendido na medida que consideramos as implicações sociais da burocracia. Cria-se, assim, um sistema de castas para os burocratas. Eles são salvos pela estabilidade e vivem a vida inteira nessa posição; todos anseiam por esse cargo estável e bem remunerado. Enquanto no mercado cada funcionário se destaca por suas aptidões, não vivendo através de assegurados programas de estabilidade pública.
Escrito por: Elmas (@LudwigVanElmas) e Fabrício (@Skyl4rks)
Revisado por: Gabriel Barnabé (@GB_Barney01)