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O site Outras Palavras, de viés assumidamente de esquerda progressista, e com o curioso título “Jornalismo de Profundidade e Pós-capitalismo”, resolveu atacar em um artigo recente tudo que destoa de suas pautas políticas. O artigo é da autoria de Henrique N. Sá Earp. E em meio a um balaio de gatos de grupos, entre eles redpills e incels, estariam os ancaps (anarcocapitalistas).
Só pelo título do artigo e chamada em uma postagem do perfil do site no Instagram, já havia ficado claro o show de falácias, distorções e desonestidade que eu encontraria no artigo. Mas em compromisso com a honestidade intelectual, resovi ler o artigo e fazer meu próprio julgamento apenas para ter certeza do que eu já sabia.
Como os demais grupos não possuem nenhuma relação de fato com o anarcocapitalismo (ao contrário do que o autor do artigo em questão possa pensar), irei tratar junto aos ancaps apenas as menções aos liberais.
Mas antes, cabe tratar das noções de “liberdade” e “indivíduo” com as quais o texto se inicia, e ele o faz por meio de afirmações que destoam e muito do posicIonamento real do anarcocapitalismo e de grande parte do liberalismo.
Liberdade e indivíduo
O texto inicia afirmando que noções “mal definidas” de liberdade estão em alta no debate público trivial, e que por causa disso estaríamos assitindo “perplexos a manifestações de ideias repugnantes, opressões laborais e afetivas, destruições de imagem e reputação, entre outros abusos flagrantes”. O autor do texto se prontifica em associar todos esses problemas ao “conceito fundamentalmente contraditório de indivíduo livre e, por extensão, no sistema de crenças que profetiza a harmonia social a partir de mediações contratuais de mútuo acordo”.
Entretanto, o autor não aponta onde está a contradição entre a defesa da liberdade individual e a livre associação mutuamente benéfica. Ora, a defesa da liberdade individual não implica no dever dos indivíduos viverem isolados entre si. Significa apenas o direito destes mesmos indivíduos viverem suas vidas como acharem melhor, fazerem suas próprias escolhas, e isso inclui a escolha de com quem se associar e de como se associar.
Se esses mesmos indivíduos preferem viver isolados do resto da sociedade ou se associar com um determinado grupo de pessoas, ficará a critério exclusivo deles.
E o autor do texto segue associando tal ideia ao liberalismo, afirmando que é inclusive sua implicação. Na verdade um entendimento correto do liberalismo mostrará que esse não é o caso. O liberalismo pode abraçar tais pressupostos até um certo ponto. Mas é o libertarianismo (da qual o anarcocapitalismo faz parte) que abraça por completo tais pressupostos.
Prosseguindo com sua “análise”, o autor afirma que tais ideias se levadas ao “extremo” por meio de “dedução causal e aplicação prática, esta ideologia”, implicam certas manifestações – segundo autor – “antissociais e de toxicidade interpessoal aparentemente desconectadas”.
Aqui será importante antecipar qual o compromisso do libertarianismo para aqueles que ainda não conhecem a ideia. E esse mesmo compromisso será melhor exposto ao longo do texto.
O compromisso do libertarianismo – mais precisamente a tradição de Murray Rothbard, pai do anarcocapitalismo – é com o respeito ao direito de propriedade de cada indivíduo sobre seu próprio corpo e bens que adquiriu por meios legítimos. Esses meios legítimos seriam trocas voluntárias destes bens, ou seja, sem coerção ou ameaça de coerção. Podendo essas trocas se darem por meio de comércio, doação, herança, etc.
Esse compromisso com o respeito ao direito de propriedade dos indivíduos é o que chamamos de princípio da não agressão (PNA), que significa que nenhum indivíduo deve iniciar agressão contra outro indivíduo.
O libertarianismo não diz que todas as relações sociais devem se resumir a isso. Diz apenas que o PNA é a condição mínima para que indivíduos possam interagir entre si sem violar seus respectivos direitos.
Isso não impede que esses mesmos indivíduos possam ser guiados por outros valores e deveres. Eles apenas não devem seguir valores e deveres que os leve a agir contra o PNA.
Uma vez que cada indivíduo possui direito de propriedade sobre seu próprio corpo e seus bens adquiridos por meios legítimos, se segue que ele possui o direito de fazer o que bem entender com suas propriedades.
É verdade que a liberdade de fazer o que bem entender (contanto que não se agride fisicamente ninguém) pode incluir inclusive manifestações consideradas ofensivas. Mas isso não seria uma regra. Como de fato não é uma regra agora. Nem todos que advogam pela liberdade de expressão a usam de forma ofensiva e desrespeitosa. Apenas entendem que outras pessoas possuem direito de dizerem o que bem entender em suas respectivas propriedades.
Isso não significa que essas mesmas pessoas devam se calar diante de tal situação. Se eles realmente repudiam um determinado discurso ou atitude (mesmo que não agressiva) eles poderão boicotar e segregar tal indivíduo. Essa é a maravilha da livre associação.
Depois de introduzir o texto falando sobre liberdade, o autor segue abordando a questão da individualidade. E ele já inicia partindo daquele estereótipo que coletivistas (principalmente de esquerda) tem da visão dos liberais e libertários sobre o indivíduo.
Segundo ele, liberais e ancaps vêem o indivíduo como alguém que é “essencialmente definida por seus atributos singulares, como arranjo constitutivo logicamente anterior às suas interrelações com o mundo e demais pessoas nele”. O curioso nessa afirmação é que ele não apresenta nenhum exemplo concreto de algum autor que liberal ou libertário que enxergue os indivíduos desta forma. Embora o contrário seja verdade.
O economista liberal Ludwig von Mises, diz o seguinte sobre a relação entre indivíduo e sociedade:
“O ser humano nasce em um ambiente socialmente organizado. Somente nesse sentido é que podemos aceitar quando se diz que a sociedade — lógica e historicamente — antecede o indivíduo.”
No entanto, ao contrário da visão do autor do artigo abordado, Mises não enxerga a dinâmica social como independente dos indivíduos e os moldando como se eles fossem fossem elementos passivos das forças cegas da sociedade (afinal, qual seria a origem da dinâmica social em última instância?). Ele enxerga a sociedade como feita da interação destes mesmos indivíduos. A sociedade auxilia em sua formação, mas eles mesmos participam da construção desta mesma sociedade, que é sempre ativa e dinâmica:
“A sociedade em si não existe, a não ser por meio das ações dos indivíduos. É uma ilusão imaginá-la fora do âmbito das ações individuais. Falar de uma existência autônoma e independente da sociedade, de sua vida, sua alma e suas ações, é uma metáfora que pode facilmente conduzir a erros grosseiros.”
…
“A sociedade é a consequência do comportamento propositado e consciente. Isso não significa que os indivíduos tenham firmado contratos por meio dos quais teria sido formada a sociedade. As ações que deram origem à cooperação social, e que diariamente se renovam, visavam apenas à cooperação e à ajuda mútua, a fim de atingir objetivos específicos e individuais. Esse complexo de relações mútuas criadas por tais ações concertadas é o que se denomina sociedade. Sociedade é divisão de trabalho e combinação de esforços. Por meio da colaboração e da divisão do trabalho, o homem substitui uma existência isolada — ainda que apenas imaginável — pela existência conjunta. Por ser um animal que age, o homem torna-se um animal social.”
Em seu ensaio ‘Liberdade, Desigualdade, Primitivismo e Divisão do Trabalho‘, o economista e pai do anarcocapitalismo, Murray Rothbard, vai ainda mais longe sobre a relação entre indivíduo e sociedade:
Os seres humanos não nasceram ou foram concebidos com conhecimento plenamente formado, valores, metas ou personalidades; cada um deles precisa formar seus próprios valores e metas, desenvolver sua personalidade e aprender sobre si mesmo e sobre o mundo ao seu redor. Toda pessoa precisa ser livre, precisa de um espaço para criar, testar e agir de acordo com suas próprias escolhas, para que qualquer tipo de desenvolvimento de sua própria personalidade aconteça. Ela precisa, em suma, ser livre para que ela seja completamente humana. Num certo sentido, até mesmo as civilizações mais rígidas e totalitárias permitiram ao menos um pequeno espaço para a escolha e desenvolvimento individual. Até mesmo o mais monolítico dos despotismos teve que liberar ao menos um mínimo de “espaço” para a liberdade de escolha, mesmo que em meio às frestas das regras da sociedade. Quanto mais livre a sociedade, claro, menor tem sido a interferência para com a ação individual, e maior o espaço para o desenvolvimento de cada indivíduo. Quanto mais livre a sociedade, então, maior será a variedade e diversidade entre as pessoas, pois mais desenvolvida será a personalidade única de cada uma delas. Por outro lado, quanto mais despótica a sociedade, quanto mais restrições sobre a liberdade do indivíduo, mais uniformidade haverá entre os homens e menor a diversidade, e menos desenvolvida será a personalidade única de cada e toda pessoa. Num sentido profundo, então, uma sociedade despótica previne seus membros de serem completamente humanos.
E prossegue:
Se a liberdade é uma condição necessária para o pleno desenvolvimento do indivíduo, ela de forma alguma é a única. A própria sociedade deve estar suficientemente desenvolvida. Ninguém, por exemplo, pode se tornar um físico criativo numa ilha deserta ou numa sociedade primitiva. Isso porque conforme a economia cresce, a margem de escolha aberta ao produtor e ao consumidor se multiplica consideravelmente. Além do mais, apenas uma sociedade com um padrão de vida consideravelmente acima do de subsistência pode se dar ao luxo de dedicar boa parte de seus recursos para melhorar seu conhecimento e desenvolver uma miríade de bens e serviços acima do nível de subsistência física.
Em outro ensaio chamado ‘Mitos e Verdades Sobre o Libertarianismo’, Rothbard responde ao estereótipo de que libertários são por regra “atomistas sociais”:
Essa é uma caricatura comum, embora seja extremamente enigmática. Após toda uma vida lendo literatura libertária e liberal clássica, nunca me deparei com um único teórico ou escritor que sequer chegue perto dessa postura.
E prossegue:
Libertários certamente são individualistas metodológicos e políticos. Eles acreditam que somente indivíduos - e não o coletivo - pensam, valoram, agem e escolhem. Eles acreditam que cada indivíduo tem o direito de ser dono de seu próprio corpo, livre de quaisquer interferências coercivas. Mas nenhum individualista nega que as pessoas influenciam constantemente umas às outras em seus objetivos, valorações, buscas e ocupações.
E ele então conclui:
Nenhum individualista ou libertário nega que as pessoas estão influenciando umas às outras a todo o momento, e certamente não há nada de errado com esse processo inevitável. Os libertários não se opõem à persuasão voluntária; eles se opõem sim à imposição coerciva de valores pelo uso da força e do poder policial. Os libertários de modo algum se opõem à cooperação voluntária e à colaboração entre indivíduos: somente à pseudo-"cooperação" compulsória imposta pelo estado.
Terminando de tratar da questão sobre liberdade e individualidade, passemos a questão do liberalismo.
Os liberais, os ancaps e a individualidade
Ao tratar do liberalismo, o autor faz afirmações que mais parecem críticas direcionadas aos libertários, uma vez que parte de um entendimento equivocado da defesa da liberdade absoluta, a qual os liberais não advogam. Mesmo o autor mais a frente irá reconhecer que os liberais acreditam na necessidade do estado para garantir a liberdade, que é uma contradição que autores libertários, como Rothbard, Hoppe e de Soto já apontaram.
De antemão, deixemos claro que uma vez que são os libertários (incluindo os ancaps) que se encaixam nessa descrição de defesa absoluta da liberdade (embora não seja isso exatamente, já que tal grupo parte da propriedade como fundamento para a liberdade), os ataques do autor serão tomados como sendo direcionados a esse grupo, e as respostas à esses ataques também se aplicarão em grande parte aos ataques aos liberais.
O autor então segue de forma falaciosa igual no restante do texto. Ele afirma que o liberal se percebe como um “indivíduo abstrato, que imagina possuir o atributo primordial da liberdade”. E que essa mesma liberdade é tida pelo liberal como “uma condição natural de autonomia desvinculada, a partir da qual todas as suas potências de pensamento e ação estão ao mesmo tempo autorizadas e reguladas por algum arremedo metafísico de Direito universal pautado em princípios de fácil entendimento, como a não-intervenção coercitiva na liberdade dos outros.
Como já foi mostrado anteriormente pelas falas de Mises e Rothbard (respectivamente, um liberal e um libertário), a afirmação de que liberais e libertários ignoram a importância da sociedade para a formação e desenvolvimento dos indivíduos é completamente falsa. Ninguém nega que cada indivíduo nasce, cresce e se forma em uma determinada sociedade. Apenas se entende que uma vez formado, este mesmo indivíduo é capaz – e possui direito – de decidir se quer se manter nessa mesma sociedade, se quer migrar para outra, se quer constituir uma nova sociedade com outros indivíduos. Sobre este último caso, basta ver as comunidades amish, quakers e a extinta (por meio do estado) comunidade de Canudos.
Estas sociedades não foram uma continuação das sociedades as quais seus membros estavam inseridos. Pelo contrário! Foram uma total ruptura destas sociedades anteriores motivadas por novos valores e concepções descobertas e trazidas por indivíduos específicos e identificáveis.
O direito de liberdade individual (de autopropriedade para os libertários) não é tido pelos liberais e libertários como de “fácil entendimento”. Sequer está ligado a um “arremedo metafísico”. Mas nasce do entendimento de que o único direito justo, universalmente aplicável a todos e em todos os mundos possíveis e de forma efetiva, é o direito de propriedade.
O único que permite que cada indivíduo exerça sua liberdade, humanidade e soberania individual. O único que permite que cada indivíduo seja uma pessoa de fato, e não um instrumento para objetivos de outro indivíduo ou grupo (que por mais que os coletivistas de esquerda neguem, é a implicação prática de suas ideias).
Daí então, o autor prossegue apresentando um suposto caso que poderia fazer o liberal (e até mesmo o libertário) mudar de ideia em relação à liberdade absoluta. E ele então traz o exemplo de um suposto liberal que vivendo na Amazônia ou deserto de Oklahoma, logo perceberia a necessidade de voltar a fazer parte da sociedade para garantir sua sobrevivência.
Apenas 2 pontos precisarão ser ditos sobre isso.
Primeiramente, não se pode afirmar que todos os indivíduos reagirão da mesma forma nesssas circunstâncias. E a própria experiência nos mostra isso. Começando com o exemplo dos eremitas, que desde a antiguidade viviam no deserto em busca de iluminação espiritual. Muitas vezes vivendo isolados, sendo Santo Antão um notório exemplo. Também é possível apontar exemplos modernos, como o japonês Masafumi Nagasaki.
Após se aposentar, Nagasaki decidiu viver sozinho em uma ilha chamada Sobotonari com pouco mais de mil metros. Aos 76 anos foi encontrado por um pescador em estado de fragilidade. Compreensível, uma vez que é bastante arriscado viver em condições limitantes nesta idade. Ainda assim, pelo tempo que ele passou na ilha, é possível perceber que ele se adaptou de forma razoável, e parecia estar satisfeito com a forma como vivia.
Bom, isso até as autoridades burocráticas japonesas o retirarem de lá. Ele pôde eventualmente voltar à ilha para visita. Nagasaki chegou a viver 30 anos na ilha. E por mais que recebesse pequenas mesadas e fizesse pequenas viagens aos lugares próximos para comprar mantimentos, ele passava quase totalmente sua vida na ilha e da ilha.
Um fato curioso é que ao voltar a viver em sociedade, ele teve dificuldade de voltar a se socializar, uma vez que se acostumou a viver sozinho.
No entanto, é evidente que casos como esse são excepcionais. Mas existem. E independente das consequências de tais estilos de vida, estas pessoas possuem o direito de escolher vivê-las.
No entanto, também sabemos que a maioria das pessoas prefere viver em sociedade devido aos seus benefícios. E o autor aborda isso como se fosse algo completamente desconhecido na literatura liberal e libertária. Ele aponta corretamente as vantagens da divisão do trabalho e das livres trocas. E como os escritos de Mises e Rothbard trazidos aqui mostraram, isso está longe de ser desconhecido por eles.
Eles não apenas estão cientes disto, como escreveram extensamente sobre isso.
Também é interessante o autor mencionar sobre o fato de que em circunstâncias extremas o liberal ilustrado pelo seu exemplo se submeteria a regras com as quais muitas vezes não concordaria visando os benefícios de participar da sociedade. Algumas considerações importantes precisam ser ditas sobre isso.
Primeiramente, é natural e próprio do ser humano abrir mão de algo que ele julgue menos importante para obter o que ele julga mais importante. E isso é basicamente um dos fundamentos da economia.
Os eremitas que foram usados como exemplo mais acima são exemplos de pessoas que abriram mão da civilização para ter maior independência, autonomia e maior contato com a natureza. Do mesmo modo, os que participam da sociedade voluntariamente o fazem por valorizarem mais os benefícios desta participação do que a possibilidade de desfrutar de maior independência e autonomia. Porém, em ambos os casos, suas escolhas foram totalmente LIVRES!
Sobre “regras das quais não se gosta”, importante analisar quais regras são essas. Uma coisa são regras privadas, consentidas pelos entrantes em uma determinada sociedade e que não atentam contra os direitos destes. Outra coisa complemente diferente são regras impostas coercitivamente sobre indivíduos, até mesmo em sua propriedade e que atentem contra os seus direitos.
A não ser que para o autor sejam aceitáveis regras injustas como proibição de mudança de religião sob pena de morte, como na Arábia Saudita, sharia em alguns países islâmicas ou até mesmo proibição das mulheres casadas viajarem sem a permissão do marido, como era exigido aqui no Brasil há algumas décadas.
Ao contrário do que o autor tenta fazer crer, aceitar acriticamente qualquer regra imposta não te faz participante do “mundo adulto”. Te faz um ESCRAVO!
Mas terminando as afirmações sobre liberais, o autor prossegue fazendo afirmações sobre os ancaps.
O exemplo do Cruzeiro Satoshi
O autor então se refere aos ancaps como um grupo que crê em “mundo composto por indivíduos, ou estreitos núcleos familiares, totalmente responsáveis pelo atendimento das próprias necessidades e interesses, cuja preservação depende consequentemente tanto de sua vocação para o trabalho quanto de sua capacidade de associação comercial e paramilitar com os vizinhos imediatos, em escala suficiente ao equilíbrio de forças contra outros grupos”.
Até aí a descrição não está exatamente errada. Embora eu possa acrescentar que não existe uma “receita de bolo” de como seria uma sociedade ancap. A forma da organização irá depender das preferências dos indivíduos envolvidos em determinada sociedade, buscando arranjos que julgarem melhor.
Então ele prossegue:
“O ancap acredita que tal arranjo maximizaria sua liberdade individual, defendendo-se de qualquer poder coercitivo e, portanto, exercendo a plenitude de seu direito universal”.
Só devo acrescentar que tal cenário só seria possível se todos os envolvidos (ou pelo menos, a maior parte deles) se comprometerem em respeitar esse mesmo direito que corretamente o autor entende como universal. A saber, o direito de propriedade.
Mas então o autor tenta invalidar a possibilidade de uma sociedade anarcocapitalista. E para isso ele usa como exemplo o famoso caso do Cruzeiro Satoshi. O cruzeiro havia sido adquirido em 2020 pelos pela por Grant Romundt, Rüdiger Koch e Chad Elwartowski.
Segundo o autor, o cruzeiro prometia ser “promessa de criar uma legítima comunidade ancap em águas internacionais – livres de impostos e leis de qualquer país”. No entanto, seu projeto foi mal sucedido devido à “um perpétuo desacordo em reuniões de condomínio e, externamente, refém de minúcias como a recorrente atracação em portos e estaleiros (de países com impostos e leis) para atendimento médico aos residentes ou abastecimento e manutenção da nave, ficando assim com o pior dos dois mundos”.
E segundo ele, o projeto havia findado após “falência contábil”
Dado o fato do texto ser desonesto e distorcer fatos do início ao fim, não é de se surpreender que a conclusão sobre o real motivo da falência do Cruzeiro Satoshi apresentado pelo autor também fosse falso.
O verdadeiro motivo do fim do Cruzeiro Satoshi passa longe dos apresentados por Henrique. Os verdadeiros motivos foram apresentados pelos proprietários em entrevistas concedidas aos jornais The Wall Street Journal e Crypto News. Segundo eles, o principal motivo foram as exigências da lei marítima, que obrigava qualquer empreendimento do tipo a contratar seguros e pagar prêmios em moeda estatal.
Para piorar a situação, os proprietários não encontraram nenhuma seguradora que fechasse contrato com o MS Satoshi. Grant Romundt, CEO da Ocean Builders, empresa responsável pelo projeto, enviou um e-mail aos seus investidores esclarecendo a questão:
“Infelizmente, não poderemos prosseguir por causa de grandes seguradoras arcaicas que não conseguem se adaptar a novas ideias inovadoras”
Além disso, o casal Chad Elwartowski e Nadia Supranee Thepdet – proprietários do projeto – já havia tido problemas com o governo da Tailândia por terem a ideia de uma moradia em alto mar sem autorização prévia. Segundo o governo, tal atitude era vista como uma “ameaça à soberania nacional”.
O casal corria o risco de ganharem prisão perpétua ou até mesmo pena de morte caso fossem pegos pelo governo. Para evitar isso, o casal seguiu para o Panamá onde poderiam estar mais seguros.
O caso foi acompanhando de perto pela comunidade cripto e libertários em geral.
Sobre as estratégias libertárias
Apesar da coragem e determinação do casal ser bastante louvável, não é um meio recomendável de fugir da tirania estatal, justamente pela visibilidade. O autor libertário Samuel Edward Konkin III já apontava o perigo de tal estratégia, justamente por atrair a atenção dos governos.
Em seu lugar – e no lugar também da via política – Konkin propôs a estratégia da contraeconomia (abreviação para economia contra-estabileshiment), que consiste na prática de atividades pacíficas – porém proibidas pelo estado – para se alcançar mais liberdade. Quem sabe plena em algum futuro.
Tal estratégia junto à teoria ética libertária consistiria no agorismo. O termo é uma referência à àgora, os espaços públicos na Grécia Antiga onde se realizavam, dentre outras atividades, o comércio. Tal doutrina é chamada assim porque ela almeja alcançar uma Ágora, que para o Konkin seria uma sociedade onde houvessem apenas interacções voluntárias e pacíficas.
E isso rebate a afirmação do autor Henrique de que as estratégias libertárias se resumem a “a intervenção política dos ancaps dá-se a partir de think-tanks ditos liberais, financiados por bilionários e governos estrangeiros (será abordado a falsidade ou veracidade dessas duas últimas afirmações mais adiante), promovendo agitação e propaganda ideológica na esfera partidária, na academia, na imprensa formal e nas redes sociais”.
Há libertários que de fato praticam a contraeconomia como estratégia para a liberdade. A curto prazo, como o máximo de libertação frente ao estado possível, e a longo prazo, tendo como meta a morte do estado por inanição. Mas mesmo que esse objetivo maior não seja alcançado, o objetivo de máxima liberdade agora já é uma grande luta pela qual vale a pena lutar.
Contra o quê ancaps lutam?
O autor também afirma que ancaps/libertárias tem sua ação pautada pelo “combate a toda forma de solidariedade social mediada por mecanismos compulsórios, como tributos, leis ambientais e trabalhistas, políticas distributivas ou de ação afirmativa e restrições à expressão de opiniões”.
Sim. Como já dito e enfatizado em todo esse texto, nós ancaps/libertários rejeitamos toda forma de iniciação da força. Por isso, somos contrários à qualquer imposição coercitiva sobre indivíduos pacíficos.
Não somos contrários à nenhuma das ações citadas pelo autor em si. Mas apenas à sua imposição pela força. E interessante notar que o autor cita até mesmo nossa oposição à “qualquer forma de solidariedade” garantida por meio de “meios compulsórios”.
Devo parabenizá-lo pela honestidade em admitir que ele defende “solidariedade” via coerção. Digo isso porque é de longa data que vejo a esquerda progressista falar tanto em solidariedade e em todas as vezes sempre tive a impressão de que ela queria dizer “solidariedade imposta à força”. Ao menos você me deu a certeza de que se tratava realmente disto.
Mas o absurdo da ideia de “solidariedade imposta à força” permanece absurdo, uma vez que sendo a solidariedade uma ação que parte um desejo sincero e espontâneo de ajudar o outro, ela não pode ser imposta à força. Afirmar o contrário seria tão absurdo quanto a ideia de ser possível amar por meio da ameaça de violência. Você pode chamar isso do que você quiser, menos de solidariedade.
O autor também afirma que a liberdade pela qual os ancaps/libertários lutam é “infantil”. Não sei como defender que toda ação pacífica não seja proibida e que todas as interações sejam voluntárias e consentidas seja uma noção “infantil” de liberdade.
A maioria das nossas ações e interações – inclusive do Henrique – são voluntárias e consentidas. Apenas defendemos que as ações e interações impostas sejam abolidas.
Think Tanks bilionários
Uma das últimas afirmações descabidas do autor é a de que libertários seriam influenciados por think tanks liberais financiadas por bilionários e governos estrangeiros. É interessante como a esquerda progressista que diz combatente das fake news é desinformação continuam espalhando esse velho mito.
O mais interessante é que o autor faz essa e outras afirmações sem dar nenhuma prova qualquer (não estranhe o texto dele ser desprovido de qualquer hiperlink contendo alguma fonte que seja).
Mas já respondendo de antemão: não. Isso não é verdade. Ao menos não totalmente. É verdade que alguns Think Tanks que se dizem libertários foram por muito tempo financiados por bilionários. Mas isso foi mais a exceção do que a regra. Inclusive o Cato Institute foi duramente criticado pelos think tanks libertárias mais radicais e seus simpatizantes justamente pelos seus posicionamentos inconsistentes. Como você pode ver neste artigo por exemplo.
Se o autor fosse mais familiarizado com o libertarianismo saberia disso.
E um bom exemplo disto é do Mises Institute, fundado pelo falecido Murray Rothbard e Lew Rockwell Jr. Um trecho de uma entrevista de Lew Rockwell em 2007 pode ilustrar bem essa questão:
O problema de financiamento foi um problema com o qual lidei desde o início. Eu queria dar uma plataforma a Murray, mas logo descobri que os fundamentos da velha linha não ajudariam enquanto ele estivesse a bordo. Eles certamente não apoiariam uma organização que defendesse posições como a abolição do banco central, ou financiasse estudos históricos revisionistas e discordasse do consenso bipartidário em Washington. As fundações corporativas, entretanto, não estão muito interessadas em ideias em geral, particularmente aquelas que ameaçam o status quo. Agora é um clichê, mas também descobri que as grandes corporações não são os maiores defensores da livre iniciativa. Também descobri que a maioria das fundações e fundos corporativos antigos vêm com restrições. E se há uma característica institucional que eu desejava para o Mises Institute, além de sua postura ideológica, era a independência. Eu não queria ser amarrado a apoiar projetos políticos mal-humorados, como vouchers ou zonas empresariais, e não queria ser forçado a enfatizar alguns aspectos da teoria misesiana simplesmente porque estavam na moda, enquanto me sentia compelido a desenfatizar outros. Eu nunca quis censurar um estudioso associado porque algum figurão da fundação não gostou do que ele estava dizendo. Eu queria ver a plenitude do programa austríaco financiado e representado, de forma consistente, sem medo e independentemente das consequências. O Mises Institute precisava fazer um trabalho profundo e amplo. Precisava ser livre para apoiar a pesquisa em áreas como metodologia econômica, que não interessa às corporações, ou explodir o mais novo artifício político, uma postura que não interessa às fundações. Finalmente, o dinheiro do governo nunca foi levado em consideração. No final, nosso apoio veio de doadores individuais e quase exclusivamente. Eu tinha um Rolodex de bom tamanho, então comecei por aí. Ron Paul e outros assinaram cartas para suas listas, o que foi uma grande ajuda, e eu tinha economias suficientes para trabalhar alguns anos sem salário. Estamos no mercado há 17 anos e demorou muito para viabilizar. Mas construímos lenta e cuidadosamente, tijolo por tijolo, e agora temos um edifício sólido. E ainda temos nossa independência e ainda temos uma vantagem.
Conclusão
O artigo do site Outras Palavras é um verdadeiro amontoado de falácias, desonestidade e mal caratismo sem nenhum compromisso com a verdade. Para o autor foi muito mais conveniente criar um estereótipo falso de um grupo e distorcer suas posições do que atacar suas verdadeiras ideias em si.
Ele também é reflexo de uma intelectualidade progressista de esquerda alheia a qualquer ideia fora de suas bolhas e torres de marfim, enquanto ficam maquinando o que acreditam que salvará a sociedade. Que pena que estão tão alheios à realidade que nem percebem que tudo que defendem já foi aplicado e está dando muito errado.
Uma resposta para “Resposta ao artigo falacioso do site “Outras Palavras” sobre os ancaps”
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Um outro exemplo de cidades ou comunidades independentes do estado é o quilombola, além das comunidades citadas no texto.
Mesmo que a economia era rudimentar ou inexistente, a comunidade era independente da coroa portuguesa e da sociedade por ações holandesas.
Apenas estou usando uma arma de representatividade que os esquerdalhas usam contra eles mesmos para mostrar que houve e há sociedades/comunidades livres do estado.
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