Escrito por: Paulo Garcia (@GauloParcia)
Revisado por: Paulo Costa (@PauloDroopy)


O discurso de valorização do empresário brasileiro, ou melhor, do “produto nacional” em geral, é uma desorientação em mão dupla. No campo ético, formado por um cultural juspositivismo coletivista – mais especificamente de característica nacionalista e polilogista, como pretendo apontar neste artigo. No campo econômico é moldado pela mais profunda ignorância e ausência de reflexão.

Ação e troca: a estrutura de mercado [1]

O Mercado, diferente de como tratam alguns políticos, engenheiros sociais e professores, não é um ente metafísico que molda e controla a humanidade, perpetuando a ganância a seu bel prazer. É uma abstração das interações humanas, mais especificamente as que ocorrem quando indivíduos desejam trocar bens econômicos entre si. O comércio – ou trocas voluntárias em geral – abordado em pequena escala; e o Mercado, geralmente é referenciado por setores, ou de forma panorâmica, em um contexto geral.

Essas trocas, advindas da ação humana, “respeitam”, imutavelmente, suas categorias [2]. Como este artigo não é uma proposta sobre praxeologia [3], é necessário apresentar algumas conclusões trazidas pela verdadeira ciência econômica, a ciência da ação humana: 1) toda ação visa o lucro psíquico [4], sendo este, muitas vezes, também o lucro cataláctico [5]; 2) toda ação visa obter o maior lucro possível, ou seja, obter os melhores “resultados” pelos menores custos; 3) invariavelmente, ao realizar trocas – interpessoais ou autísticas [6] – demonstra-se preferência, ou seja, maior valoração [7], pelo que foi obtido em relação ao que foi abdicado [8]. Todas essas conclusões aplicam-se para qualquer ação humana, e, invariavelmente, para o mercado.

O polilogismo de senso comum

O polilogismo, hora presente de forma quase que imperceptível – tendo suas conclusões principais “dissolvidas” e apresentadas como senso comum, i.e., a nível cultural -, hora escancarado em diversas ideologias; é a atribuição de estruturas lógicas diferentes para grupos humanos diferenciados – sempre por algum quesito arbitrário, como classe social, classe política, raça ou nação[9]. No marxismo é presente na diferenciação, a nível ontológico, entre a burguesia e o proletariado. No nazismo, racismo, e até mesmo em ideologias teocráticas, temos este padrão de “diferenciação” dos indivíduos ressurgindo de formas um pouco distintas.

A renúncia por validade filosófica deste conceito já foi suficientemente desmascarada por Ludwig Von Mises, em especial no seu livro “Ação Humana”. Cabe-me aqui trazer algumas observações – já abordadas pelo próprio – a respeito de suas influências políticas. O polilogismo, enquanto característica presente em ideologias e propagandas governamentais, é uma irracional – e destrutiva – arma ideológica, dotada de interesses obscuros. Por diversas vezes serviu como respaldo para a luta de classes, para o combate armado e massacres, para diversas violências cometidas cotidianamente e, dentro do que nos interessa neste texto, para um conceito comum ao mercantilismo: a balança comercial.

São nestes dois últimos pontos que, como afirmado anteriormente, o polilogismo – ou suas conclusões – se apresenta de maneira tácita, habitual. Enquanto ideológico, em discursos inflamados, como no nazismo ou no marxismo, está declaradamente presente. Por outro lado, em relação a assuntos econômicos ou legais, se tornou um conceito sorrateiro, travestido de supostas boas intenções – como o amor ao conterrâneo e a valorização do comércio e dos comerciantes locais[10].

Ao tributar ou dificultar por lei as importações, os governos, em sua maioria, não mais declaram os indivíduos estrangeiros como inimigos abertamente. Condenam, de maneira conveniente, o funcionamento natural do mercado. Afirmam ir contra a injustiça e a concorrência desleal, em favor da proteção dos empreendedores locais – filhos da pátria. Porém, quando questionados a respeito da justiça e motivação em se adotar tais medidas, os defensores de medidas protecionistas – principalmente dentre os mais leigos –, fazem ecoar de suas gargantas a vazia e frustrante resposta: é justo, uma vez que os empresários protegidos são pertencentes a nossa nação.

Primeiro devemos escancarar as influências ideológicas absolutamente repugnantes por trás destes conceitos: tendo em vista que esse apoio se dá sobre agressões do Estado – impostos ou leis unilaterais -, a princípio contra empreendedores externos, sob a justificativa de proteção aos empreendedores locais – simplesmente por serem locais -, temos dois elementos presentes que compõem as características principais do polilogismo:

Identidade de grupo + agressão “eticamente justificável” a grupos diferentes.

Somente um conceito que atribui uma estrutura lógica diferente a outros grupos de indivíduos conseguiria “justificar racionalmente” leis diferentes e arbitrárias, ou melhor, agressões; a esses grupos. Deontologicamente só se poderia justificar “dois pesos, duas medidas” através de estruturas lógicas diferentes. Apenas sendo diferentes, eles estarão passíveis de agressão de forma que seja perfeitamente aceitável.

Contudo, enquanto essa diferenciação se oculta sob as asas do senso comum, respondo-a com mais senso comum: por que devemos proteger, especificamente, habitantes de uma mesma nação, ou melhor, pátria? Por que não valorizar, perante os demais, apenas empreendedores habitantes da mesma rua? Ou bairro? Ou Cidade? Ou continente? Melhor ainda: façamos apenas uma proteção mundial dos empreendedores do planeta Terra contra possíveis empreendedores extraterrestres.

Justificativas identitárias referentes a semelhanças culturais não responderiam de forma coerente essa questão, principalmente em um país como o Brasil, uma vez que território brasileiro – assim como cidades relativamente pequenas do Brasil – habita grupos culturais e étnicos completamente distintos entre si – mesmo os de mesma nacionalidade. Portanto, ainda dentro do senso comum, é válido questionar: o “bom samaritano” defensor dessas “proteções” preferiria o bem de um empreendedor, desconhecido – e de índole completamente desconhecida – por ser de mesma nacionalidade, ou de um amigo empreendedor estrangeiro, cujo bom trabalho e intenção estivesse ciente?

Por fim, cabe ressaltar: culturas emergem como normas tácitas, formandas pelo hábito, ou melhor, pelo padrão criado das interações sociais, que por sua vez, são moldadas pelas ideologias[11] e influências dos indivíduos. Culturas estão constantemente sujeitas a mudanças. Tratá-las como preceito normativo, de forma a julgar como ético a imposição unilateral de uma norma tácita, não passa de um juízo de valor, caindo assim em uma das “barreiras” da formulação ética, conhecida como “Guilhotina de Hume”.

A injustiça intrínseca ao comércio

Sendo vazia a justificativa da semelhante nacionalidade e cultura, os “nacionalistas de armário” avançam para um ponto no qual os marxistas e esquerdistas em geral tocam desde o início: a injustiça do mercado. Para os marxistas, o capitalismo é intrinsecamente injusto não só pela máxima “se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”. Uma vez que os “detentores do capital” supostamente possuem um maior “poder de barganha” perante o “proletariado”[12], há uma coerção implícita no que denominamos de laissez-faire.

Na visão “protecionista”, se existem empresários estrangeiros com maior capital do que alguns – ou todos – os empresários nacionais, sua concorrência é absolutamente desleal. Capitalistas mais ricos podem possuir melhores fatores de produção, portanto, podem cometer o absurdo crime de vender produtos melhores e mais baratos. Em resposta a isto, os protecionistas elaboraram as deploráveis taxas antidumping[13].

O erro em condenar o livre comércio como um sistema de injustiça e coerção consiste na ignorância, pelos coletivistas e falsos economistas, em relação às individualidades humanas e as categorias da ação. Deve-se reconhecer que indivíduos possuem direito a propriedade e autopropriedade[14]. Participam de um sistema de trocas voluntárias porque podem alocar os próprios corpos e recursos da maneira que bem entenderem, desde que não aloquem as propriedades alheias de maneira coercitiva.

Por fim, ainda que restasse uma justificativa utilitarista para a condenação e regulação do mercado, que alegasse a diminuição de riqueza e satisfação daquele com “menor poder de barganha”, além de um erro ético [15], seria também um erro teleológico [16]. Tendo em conta o que foi dito no início desta coluna sobre as categorias da ação, temos: toda troca comercial, uma vez que as expectativas de ambos os participantes tenham se mostrado acertadas em relação aos bens trocados, estes participantes alcançaram um nível de satisfação superior ao que teriam se não tivessem realizado a troca [17]. Caso essas expectativas se demonstrem frustradas e um ou mais dos envolvidos em uma troca considerem-na como um prejuízo após que essa tenha sido realizada, devem arcar com as consequências das próprias ações.

Assim como necessidades biológicas, a escassez de recursos e a desigualdade são características intrínsecas da humanidade. Vociferar contra os fatos e os denominar como injustiças causadas pelo capitalismo – que permitiu a humanidade cooperar e prosperar -, é incapaz de alterar a realidade. Só há coerção quando há ameaça sobre as propriedades alheias. Uma suposta diferença do poder de negociação pode ser fruto de mérito ou sorte. Independente disto, não se altera o fato de que igualdade sobre o poder econômico não é e nem deve ser um dever intrínseco a ninguém.

Referências bibliográficas:

[1] Uma descrição muito menos breve do que é o mercado, sobre os argumentos e estudos da Escola Austríaca de Economia, foi feita por mim em meu artigo: GARCIA, P. Mercado, Informação e Estado. Gazetalibertaria.news. Disponível em: <https://gazetalibertaria.news/pgarcia/mercado-informacao-e-estado/>

[2] HOPPE, H. H. A Ciência Econômica e o Método Austríaco, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. Disponível em: <https://amzn.to/32jBAcN>. MISES, L. v. Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. Caps. 4, 5, 6 e 7.

[3] MISES, L. v. Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. Caps. 1, 2, e 3. Disponível em: <https://amzn.to/2BHRi6D>. 

[4] MISES, L. v. Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. Cap. 8. Disponível em: <https://amzn.to/2BHRi6D>.

[5] MISES, L. v. Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. Caps. 14 e 15. Disponível em: <https://amzn.to/2BHRi6D>.

[6] MISES, L. v. Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. P. 241 Disponível em: <https://amzn.to/2BHRi6D>.

[7] MISES, L. v. Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. Cap. 4. Disponível em: <https://amzn.to/2BHRi6D>.

[8] Essas valorações são, a princípio, expectativas iniciais que podem se revelar errôneas e frustradas. Mas, enquanto expectativas iniciais, são factuais e universais.

[9] MISES, L. v. Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. Cap. 3. Disponível em: <https://amzn.to/2BHRi6D>.

[10] Cabe ressaltar que a ignorância jurídica perpetuada pela era do positivismo é tamanha, que o polilogismo, quase que escancarado dentro do positivismo jurídico, ao julgar de formas diferentes dois indivíduos diferentes; passa despercebido – e isento de críticas – pela óptica do senso comum.

[11] Por ideologias, entende-se: conjunto de ideias.

[12] Utilizei das aspas para citar diretamente os termos comumente usados pelos marxistas.

[13] ROTHBARD, M. N. Protecionismo. Mises.org.br. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=64>.

[14] HOPPE, H. H. Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2013, cap. 7. Disponível em: <https://amzn.to/2BX1ecz>.

[15] O erro ético consiste no salto lógico de postular, arbitrariamente, tal norma a partir de um fato, como citado anteriormente.

[16] O erro teleológico está na incongruência com a categoria da ação do valor subjetivo.

[17] Mais sobre trocas e mercado, está no meu artigo indicado na primeira nota de rodapé.


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