Javier Milei tem verdadeiras chances de se tornar o novo presidente da Argentina. Em primeiro na corrida eleitoral até o momento, o candidato se autodenomina anarcocapitalista e libertário, prometendo, dentre outras, legalizar a venda de órgãos e extinguir o banco central. Para compreendermos melhor essa situação, devemos analisar com mais profundidade a iteração do sistema de dominação atualmente em voga.

Sabemos que o estado é destrutivo por natureza. Sua origem está no crescimento do poder já concentrado de alguns que, em resposta às ameaças externas ou por providência divina, se elevam acima da categoria de existência humana, sendo agora capazes de realizar o que proíbem que os outros façam. O processo de transformação de um ser comum em um governante retira do indivíduo as limitações que o tornam um mero humano, ou assim tanto governantes quanto governados se fazem convencer.

Certamente que hoje, como humanos modernos, já há muito deixamos de acreditar em governantes como figuras divinas poderosas ou que de alguma forma as representem no plano terreno. Olhamos para o passado de nossa civilização e não somos capazes de compreender como as pessoas de fato se convenciam ao ver os reis, faraós ou imperadores como seres de natureza divina. Uma mente moderna, após os desdobramentos da revolução científica, é incapaz de cair em uma narrativa tão ridícula quanto essa. Nossos antepassados eram realmente mais ingênuos do que nós, mais influenciáveis, portanto.

A imprensa, ramo informacional do sistema de poder estabelecido, com o prospecto da vitória de um candidato que se diz pró-liberdade, já botou para funcionar sua máquina de propaganda e destruição de imagem. A Milei já foi dada a alcunha de extrema-direita, curiosamente a mesma que colocam nos fascistas ou nazistas que, como todos nós sabemos, como ele, também queriam um estado mais fraco e maior independência do indivíduo frente ao coletivo. Em todo o caso, os termos “libertário”, até mesmo “ultralibertário” (seja lá o que isso signifique), bem como “anarcocapitalista”, estão sendo associados ao candidato que, em matérias da imprensa, também já foi ligado a Bolsonaro e Trump.

Seria positiva a associação do libertarianismo com candidatos presidenciáveis? Não seria uma forma de disseminar a ideia para o público amplo? Em parte, sim. É positivo ver pautas de liberdade sendo debatidas em público e obtendo maior alcance. Não precisamos citar outro além de Ron Paul como exemplo positivo que rapidamente vem à mente. Alterar o escopo do debate público pode trazer novas reflexões. Infelizmente, mesmo que apresentando outra perspectiva sobre assuntos sociais e econômicos, ainda tudo se faz sob o pano de fundo do estado e de seu processo eleitoral; e isso não deixa de ser uma fraqueza. Ainda, para os opositores, em verdade, se torna munição. Como o público em geral desconhece o significado dos termos “anarcocapitalismo” e “libertarianismo”, bem como os desagrada a ideia de anarquia que possuem em suas mentes, por meio dos esforços político-midiáticos, todo erro ou falha, mesmo os que não venham a ser de fato culpa de Milei, serão por tabela também associados ao libertarianismo ou apontados como falha inerente às propostas que pretendem elevar a liberdade individual. Muitos terão o primeiro contato de forma negativa, e isso influenciará, associado à falta de aprofundamento de pesquisas sobre o assunto, a imagem que para sempre carregarão. “Já tentamos isso e veja no que deu”. “Você é libertário? Ah, como aquele maluco do Milei?” Caso eleito, ouvir alguém dizer isso no futuro soa tão improvável assim?

Por fim, o que Milei pretende fazer certamente não será concretizado. Devemos lembrar que estamos falando de campanhas políticas para adentrar uma estrutura ilegítima de poder para, de alguma forma, tentar destruí-la por dentro. Como se isso realmente fosse um belo plano. A liberdade não pode ser imposta ou atingida por meio do estado, simplesmente por ser não um estágio no qual se chega por mudanças na lei, mas a alteração e abandono da mentalidade de subserviência e imposição. Não é um fenômeno coletivo, mas individual. Muitos argentinos apoiam Milei pelo mesmo motivo de muitos brasileiros terem há alguns anos apoiado Bolsonaro: ele é diferente dos outros, será diferente dessa vez. Um candidato desse tipo apenas se torna uma alternativa para as massas quando a situação do país passa por um ponto crítico de instabilidade. Uma solução incomum para tempos incomuns. Os argentinos apoiam menos Milei que a esperança pelas mudanças que ele representa. Ele apenas se tornou a face pública desse desejo, desejo esse que nunca verdadeiramente será atendido no sistema de dominação.

O sistema democrático é apenas uma estrutura montada para canalizar as esperanças da população. Foi um esquema muito bem pensado que utiliza palavras bonitas como “liberdade”, “mudança” e “futuro” para, em verdade, perpetuar as causas daquilo que se deseja combater. Para a classe política, não é vantajosa a resolução definitiva de problemas, pois não podem posteriormente ser explorados para novas campanhas. Mas não se pode também ignorar as maiores e mais urgentes demandas, pois isso danificaria a imagem. Caminho muito mais agradável é maquiar soluções, assim é possível obter o melhor dos dois cenários anteriores. Abordei esse tema com maior afinco aqui e aqui, não devendo, portanto, me desviar agora de forma desnecessária.

Milei não é a solução, pois entrará em um sistema construído para os interesses da classe dominante. Esse foi seu propósito de criação. Pior, mesmo inserindo novas soluções no debate público, seu fracasso será utilizado como arma contra as pautas de liberdade que defende. Mesmo após inúmeras iterações, os indivíduos se agarram na esperança ingênua de que, colocando as pessoas certas nos cargos certos, elas farão o que é certo e o país será salvo. Nosso futuro, bem como o da nação, dependem da vitória ou derrota de um determinado candidato. Para consertar o que está errado, devemos votar da maneira correta. Apenas assim a visão da minha cabeça do que deve ser feito será posta em prática.

Realmente acreditam que a eleição de um homem seja a solução para problemas antigos, profundos e multifacetados; pior, que encontrará a solução para os muitos milhões de pessoas, pois apenas continuamos com problemas e críticas semelhantes às que faziam nossos avós sobre a situação político-econômica do país por ainda não termos colocado no lugar certo aquele com a verdadeira vontade ou as habilidades necessárias para de fato resolvê-los…mesmo que sempre fiquemos, a cada eleição, esperançosos no candidato da vez. “Agora vai!” “Dessa vez as coisas serão diferentes!” “Esse é o menos pior…baseado no que ele me disse e a imagem que passou durante o processo de convencimento em larga escala que é o processo eleitoral. Confio mais nele, mesmo não tendo base real para isso”. Um devaneio coletivo baseado em esperanças infundadas.

Em meio à típica euforia por uma solução que agora se encontra à vista, ou assim parece aos olhos dos esperançosos, poucos param para pensar que estão, em verdade, exigindo de um ser humano uma gama de capacidades que ultrapassam a mera humanidade. É, parece que não somos tão diferentes de nossos antepassados como fomos levados a pensar. Talvez os humanos do futuro nos tratem com o mesmo senso de incredulidade enquanto, como nós, repetem os mesmos erros sem perceber, apenas por estarem ocultos sob um novo embrulho.

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