Para se tornar um especialista em filosofia, literatura, física ou qualquer outra área do conhecimento não é preciso ler… não muito, pelo menos.
Não são poucos os manuais das várias áreas do conhecimento. Só a Globo Livros já produziu mais de dez em sua coleção As Grandes Ideias de Todos os Tempos. O Livro da Mitologia/Física/Ecologia/Literatura/História, etc, etc. Livros simples e bem ilustrados, de linguagem e preço acessíveis. Pequenos resumos de grandes ideias. Mas por que isso seria ruim? Simples: não é.
Manuais fazem parte da jornada pelo conhecimento. Seja para compreender melhor uma obra que acabou de ser lida, seja para preparar o leitor antes de começar a leitura, manuais são bons começos e bons finais, mas também são traiçoeiros: são facas de dois gumes.
Manualista: esse é o adjetivo que se usa para rotular aqueles que se limitam aos livros manuais. Preguiçoso, pedante e pretensioso também serviriam, se não fossem termos abrangentes demais. Os manualistas são pessoas que, ocupadas demais para estudar, se limitam a ler e reler livros manuais até decorá-los. Isso os possibilita participar de conversas que estão além de seu alcance, questionar pessoas mais inteligentes — em relação a certa área do conhecimento — como se estivessem no mesmo nível que elas, e mais um monte de outros privilégios que, sem a ajuda dos livros manuais, estariam reservados àqueles que se dedicam de corpo e alma ao conhecimento. Os livros manuais são a porta de entrada da academia — tanto para os bem intencionados quanto para os não tão bem intencionados. Mas o que isso tudo tem a ver com Carpeaux?
Otto Maria Carpeaux, formado em Direito, doutorado em Matemática, Física, Química, Filosofia, Sociologia, Leitura Comparada, Política e Letras — tudo isso até os 39 anos de idade, antes de fugir da vitória do nazismo na Áustria e chegar ao Brasil, em 1939. Carpeaux, que passou o resto da vida no Brasil, tornou-se rapidamente um dos maiores — senão o maior dos — nomes da crítica e historiografia literária do país. Mas isso não foi o suficiente.
Em 1959, Carpeaux escreve a maior — tanto em quantidade quanto em importância — de suas obras: História da Literatura Ocidental. Cerca de quase quatro mil páginas de puro conhecimento historiográfico e literário. Um prato cheio para os manualistas que buscam atalhos para se passarem por especialistas em literatura… a menos que estejamos falando de uma obra escrita por um gênio.
Ao ler qualquer um dos volumes da História da Literatura Ocidental, o leitor não familiarizado com a cultura literária estranhará a ausência de justificativas, argumentos, provas de que aquilo que o autor fala é real. Carpeaux não conta quais são seus alicerces, seus lastros — e por uma razão muito simples:
Imagine passar grande parte da vida estudando algo, se dedicando, quebrando a cabeça. Após anos de esforço intelectual, algumas descobertas são feitas e, então, o pior acontece: interesseiros se apropriam dos argumentos encontrados e fazem uso das ideias para ganhar prestígio, para encobrirem-se com o “manto da erudição”. O que antes era conhecimento, progresso, agora é arma; a intelectualidade é reduzida à vaidade e à política. Todo aquele trabalho para, no fim, fornecer jóias à mãos erradas. Carpeaux não cometeu esse erro.
Apesar de cobrir as origens, características e fins de autores, obras e correntes literárias, o autor não dá aos preguiçosos aquilo que eles precisam para se fingir de eruditos: Carpeaux não justifica nada do que afirma, não dá argumentos, apenas afirma proposições, raramente cogitando estar errado. Existem fontes, é claro, e todas elas podem ser encontradas no capítulo Notas, no fim de cada volume, logo antes do Índice Onomástico. Consultar as fontes, ler os livros que são apresentados pelo autor ou ao menos passar horas meditando sobre o que foi dito na obra darão a qualquer um os argumentos necessários para compreender os porquês de Carpeaux — a qualquer um que não seja um manualista.
Na História da Literatura Ocidental não existem gravuras, esquemas desenhados ou resumos. Os capítulos são longos, por vezes chegando a ter quase cem páginas; e apesar da escrita simples, típica dos livros manuais, a titânica quantidade de informações inunda a mente do leitor. Cada fim de parágrafo conclui uma ideia — cada início de parágrafo é um degrau a mais nas profundezas da mente do autor. E não para por aí:
Carpeaux também não facilita quanto a cronologia da história. Desde as primeiras páginas, onde fala sobre a literatura grega do período arcaico, Carpeaux faz comparações entre os antigos e autores medievais, renascentistas, iluministas, românticos e modernos — muito antes de explicar cada um deles. Para compreender as comparações, será preciso confiar no autor, avançar na leitura e, talvez, reler tudo de novo… e provavelmente ler mais de uma obra de ambos os autores… de ambos os autores de cada uma das várias comparações que Carpeaux faz em cada volume, em cada capítulo… em cada parágrafo.
Esse padrão de “simplicidade nas partes, confusão no todo” é a única constância que se encontra na obra. Sem que perceba, o leitor é posto pelo autor num carrinho que está nos trilhos daquela que é provavelmente a maior e mais enigmática montanha-russa da historiografia literária que jamais foi escrita. E o pior: Carpeaux fala sobre tantas obras, autores e períodos históricos com tanta propriedade que, instintivamente, o leitor acaba levando tudo como verdade absoluta, ainda que o autor não lhe tenha fornecido prova alguma de seu conhecimento. A genialidade de Carpeaux fala por si mesma — transborda de suas palavras e preenche a mente do leitor, sem deixar espaço para a descrença. Uma habilidade que qualquer escritor com pretensões de doutrinação dogmática sonha em ter. E isso gera problemas:
Quem quer que ouse parafrasear Carpeaux não encontrará, sem o devido esforço, justificativas para suas proposições. Nem para as suas próprias, nem para as dele. Carpeaux é o pesadelo dos preguiçosos: dá ao leitor — assim como os livros manuais — o início e o fim, mas deixa vazia uma parte essencial: o meio. É um manual incompleto. O leitor recebe a responsabilidade de preencher, pelo esforço próprio, as afirmações do autor com o “recheio da intelectualidade”; recheio que se encontra nas Notas e nas obras comentadas pelo autor. Carpeaux cria falsos atalhos — ratoeiras para os “eruditos dos manuais”. Um poeta de prosa: entrega os degraus, desafia o leitor a montar a escada sozinho e, do alto, aguarda pacientemente pelo seu sucesso… ou fracasso.
Carpeaux é erudito, e apesar de não ser obrigado, escreve de maneira erudita: desafia o leigo e seu pretensioso “eruditismo”. Porque é isso o que os poetas, os grandes poetas, fazem: desafiam o espírito humano a mostrar o seu melhor lado… ou o seu pior.
Para se tornar um especialista em filosofia, literatura, física ou qualquer outra área do conhecimento não é preciso ler… a menos que se queira evitar passar vergonha. Caso contrário, é melhor abrir o livro e começar a fazer o dever de casa.